quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O pão nosso


Em uma manhã no hortomercado, próximo à banca de pães, uma senhora passada dos setenta anos, observando o funcionário que se afastava com uma grande cesta vazia de pães, interpelou um senhor na mesma faixa etária lamentando a ausência de pães frescos. O homem rapidamente a corrigiu mostrando com um gesto largo duas cestas transbordando uma nova fornada. A mulher se aproximou e, ao perceber que estava diante de baguetes e pães franceses integrais, prorrompeu em impropérios dirigidos ao alimento:

- Essa gororoba eu não como! Isso é uma porcaria! Integral! Boa droga!

Indignado, o homem acorreu em defesa dos grãos integrais retrucando veemente:

- Minha senhora, estes é que são bons! Têm mais fibras - contribuem para uma melhor digestão. O outro só engorda! A senhora não sabe?

E olhou para o abdome dela procurando a comprovação de sua sentença. Decepcionado com o resultado da investigação, ofegou.

Animada, ela não se deteve:

- Isso tudo é bobagem! Enrolação!

O homem tremeu! Sua cara ficou mais vermelha que os tomatinhos-cerejas que estavam em promoção. Parou bruscamente de colocar pães no saquinho que segurava. Olhou para mim com olhos súplices, como quem buscasse uma bóia em meio ao naufrágio. Sorri e completei meu pacote de baguetes integrais enquanto aguardava o desfecho que não tardou a vir:

- Minha senhora, os médicos, os nutricionistas, os doutores todos afirmam que o integral é melhor. Quem a senhora acha que é para questioná-los?

Saí correndo antes que soltasse uma gargalhada e apanhasse de alguém.

Um mês depois, na fila do caixa, um homem “esportivo” – visivelmente adepto de atividades físicas regulares, vestido com calção, camiseta e tênis de corrida – contando uns trinta anos aguardava com seu carrinho repleto de frutas, legumes, granola e iogurte light. Na frente dele, uma franzina quarentona atulhava seu carrinho com caixas e mais caixas de sucos industrializados. Ele a observava com indignação messiânica:

- Você deveria levar frutas ou suco fresco ao invés dessas caixas! Isso tem muita química! E açúcar também! As fibras e as vitaminas que sobraram são uma ninharia...

A mulher virou-se para ele, olhou-o nos olhos, fez um esgar tão feroz que recuei meu carrinho e, então, rosnou:

- Eu trabalho! Sou muito ocupada! Não tenho quem me faça suquinho!

Para a sorte dele, o caixa a chamou. O infeliz ficou com cara de cão sem dono. Um cachorrão de metro e noventa chutado e batido por uma figurinha de metro e meio. Ui!

Lembrei que quando eu tinha uns quinze anos enchia a paciência de meus pais com relação ao quesito alimentação. Não sei como eles me aguentavam. Acho que desligavam os ouvidos. Eu fazia questão absoluta de acompanhá-los às compras de mês. Eles tentavam escapar sem que eu percebesse. Mas eu era tinhosa. E lá íamos nós! Não havia problema quanto ao caráter da minha alimentação natureba de então. O que eu queria era providenciado. Às vezes, meu pai me lembrava das vitaminas lipossolúveis e da necessária ingestão de gorduras. Duro mesmo era minha pronta declamação de todas as desvantagens, prejuízos, toxinas e desgraças dos itens que eles escolhiam para eles assim que eram colocados no carrinho. Eu parecia um bispo pentecostal expurgando demônios de seu rebanho. Impressionava! O público os encarava com dó!

É muito interessante essa característica tão humana de querer salvar seu próximo a qualquer preço! E o que dizer dessa certeza tão certa, tão cristalizada, tão aparentemente desprovida de dúvida de que o mundo deveria nos tomar como exemplo, como modelo? Se estamos tão certos de nossas certezas e escolhas, por que nos incomodamos tanto com os “erros” alheios? Esquisito, né?

Um comentário:

Elton Pinheiro disse...

Isabel, gostei muito desse post. Lembrei do tempo que eu morava em Laranjeiras, na Rua das Laranjeiras tinha um supermercado, com esses personagens aí..