
Segundo o Dicionário Aulete Digital:
(sen.sa.ci:o.na.lis.mo)
sm.
1 Caráter ou qualidade de sensacional.
2 Interesse em buscar ou explorar assuntos sobre fatos ou pessoas, que possam provocar escândalo, impacto e chocar a opinião pública.
3 A divulgação dessa matéria em jornais, revistas, rádio, televisão etc.
[F.: sensacional + -ismo.]
O sensacional é espetacular, atrai e prende o olhar. É intenso, vívido, vivo. Ele é fora de série. Mas como a matéria do sensacionalismo pode ser fora-de-série se ele se repete, se alastra e habita nosso cotidiano? Como aquilo que é supostamente especial pode ter se tornado banal, trivial, corriqueiro?
O sensacionalismo tem um caráter ritual que costuma ser negligenciado.
Tanto os intelectuais profissionais como o famigerado homem comum têm por hábito emitir juízos de valor sobre o fenômeno. Em geral, julgam-no negativamente. Quanto às possíveis explicações que imaginam, costumam limitar-se a variações acerca da ganância das empresas de comunicação. É inegável que, desde seus primórdios, em momentos críticos, empresários do ramo tenham lançado mão do sensacionalismo para elevar suas receitas. Aliás, vale notar que, hoje, ao nível planetário, a chamada imprensa tradicional vive um momento crítico. Não devemos esquecer que para que a receita aumente, é necessário que o consumo – o público, a audiência – cresça. É comum explicar a atração do público pelo sensacionalismo como efeito do baixo nível educacional, intelectual e/ou de uma hipotética decadência moral da sociedade. É fato: o sensacionalismo é fácil – uma espécie de fait-divers “do Mal”! Por isso, dizem, agrada aos simples e aos simplórios. Quanto aos demais, caem na vala comum da decadência moral e/ou da perversidade. Dizem.
Alguns – intelectuais, políticos, formadores de opinião e quejandos – se empenham em projetos visando suprimir tamanha chaga da sociedade contemporânea. Tornam-se patronos de causas tais como: a censura dos meios de comunicação, muitas vezes, batizada com nomes singelos, que nos remetem a uma espécie de paraíso virtuoso; a estatização geral de tais meios de comunicação, a qual baniria definitivamente de nossas vidas a praga da cobiça e da monetização dos valores (neste caso, o Estado é imaginado como uma espécie de pai amoroso, desinteressado tutor de nossa perpétua imaturidade) e tantos outros projetos que têm como objetivo comum nos proteger da mentira e das emoções baratas. Somos ingênuos, inocentes, frágeis, pueris. Manipulados, manietados por forças incrivelmente poderosas que pairam acima da sociedade. Precisamos ser protegidos. Se não o dizem claramente, insinuam.
No tempo em que as mídias irradiadas dominavam o cenário, não era difícil que muitos dos paladinos das boas intenções caíssem na esparrela da manipulação a serviço da ganância para explicar o sensacionalismo. Hoje, quando a comunicação em rede já alterou radicalmente a cartografia do campo comunicacional, podemos observar de forma direta a força de atração do sensacionalismo. A chamada interatividade expõe de forma cabal a volúpia da maledicência. Já não nos limitamos a consumir o espetáculo da desgraça alheia. Já não nos limitamos a comentar junto aos círculos íntimos ou pessoais – família, vizinhança, trabalho, clube. Não. Hoje nos empenhamos em repercutir e “opinar” sobre escândalos, desgraças e que tais em rede – sites de relacionamento, blogs, “comentários” de jornais, revistas virtuais etc.. “Opinar”, acusar, condenar em rede é um deleite de grande intensidade – atire a primeira pedra quem não o experimentou! E generalizado – tanto no que se refere ao objeto como ao sujeito. Quer dizer, pode-se falar mal de tudo ou quase tudo, ainda que certas causas e personagens se mostrem empiricamente mais atraentes que outros. Certo senso comum do politicamente correto levanta a galera. Celebridades, famosos, poderosos, ricos e “privilegiados” (uma palavra de contornos bastante nebulosos na atualidade) em geral são os personagens preferenciais. Quanto ao outro lado, o da “opinião”, ele se compõe de gente das mais variadas classes, estratos e nichos sociais. Todos cobram sua cota de participação no espetáculo da queda alheia – um verdadeiro deleite.
A visibilidade é um bem valorizado, desejado, buscado com voracidade em nosso tempo. Quando o afirmo, não faço julgamento moral – trata-se de uma constatação. Assim é porque talvez a ameaça do anonimato seja tão vívida, robusta, promissora. Tornar-se visível, ainda que de modo fugaz, pode criar a ilusão de reconhecimento, de permanência. E, em nossos dias, a visibilidade não é atingida apenas por méritos substanciais. Muitas vezes – a maioria delas talvez – a notoriedade acontece acidentalmente ou quase. Os visíveis equilibram-se em uma fina linha acima de um profundo abismo. Quanto mais visível, mais profundo é o abismo. Carregam a mácula da aura com a qual os coroa a sua visibilidade. Frágil aura. Seu glamour – que raramente tem a ver com suas habilidades gramaticais, conforme sugere a etimologia – é sua pecha, sua perdição. A etérea marca ora os aproxima dos deuses, ora, dos monstros, ou, simplesmente, da mais chã abjeção. Às vezes, personagens obscuros irrompem em cena como enigmáticos protagonistas de algum espetáculo extremo. Tornam-se subitamente visíveis. A rigor, qualquer um pode brilhar em cena por alguns dias, horas, minutos ou mesmo segundos. A circunstancial excepcionalidade se gera ao acaso. Pode perdurar ou chegar ligeiro ao ocaso. Muitos acreditam que algumas pessoas podem chegar ao crime hediondo simplesmente pela notoriedade, pelo reconhecimento, ainda que às avessas. Inúmeras chacinas são fabuladas assim pelos explicadores de plantão. Não necessitamos de um grande esforço de memória para listá-las.
Costumamos crer que, noutros tempos, deuses, heróis, reis e pais eram figuras mais sólidas do que hoje nos parecem. Figuras estas às quais creditávamos nossa sorte, nosso destino. Nossos senhores. Acreditávamos que deles dependíamos. Éramos gratos por sua boa vontade, pelas graças que nos concediam. Os amávamos. Revoltávamo-nos ante seus caprichos, sua dura lei. Os odiávamos. Amor e ódio por nossos deuses-demônios eram faces antagônicas e complementares de uma coisa só, ou quase – nossa lei, nossa ordem, nosso ideal. O que nos fascina guarda íntima relação com o que nos enoja. Não tenho certeza acerca do quanto esses deuses e senhores do passado eram realmente sólidos, estáveis, perenes. Todavia, conhecendo um pouquinho de história, não é difícil imaginar o quanto o ritmo da vida, a percepção do tempo e a do tempo das coisas mudaram nos dois últimos séculos. Citando o Marx do Manifesto Comunista, Marshall Berman disse, acerca da modernidade, que “tudo que é sólido desmancha no ar”. Hoje, na célebre era pós-moderna, fascinar é um valor e o fascínio é volátil, ou melhor, a duração de seus objetos é ínfima. Perdurar na atualidade é um desafio que poucos enfrentam com sucesso. Erguemos e destroçamos ídolos em um ritmo alucinante. Eles passam. Materializam-se e desmaterializam-se ligeiros. Talvez por isto, dessubstancializem-se. É corriqueira a declaração de que as celebridades são vazias. Sua vida útil pode ser ínfima. Há colunas em algumas publicações que avaliam em que ponto de sua trajetória se encontra uma celebridade. Do nascimento à queda, passando pelo apogeu, o tempo voa.
Em Totem e Tabu, Freud é deveras didático quanto à nossa disposição para sacrificar nossos deuses em seus próprios altares, para canibalizar nossos senhores. Não somos piores ou melhores do que jamais fomos. Continuamos a devorar nossos senhores, nossos ídolos em seus altares. Eles se sucedem como mercadorias em uma linha de montagem. Seus altares conectam-se em rede. Suporta-os a página, o écran da TV, do computador, do celular... Apresentam-se etéreos, mas, se não o sabemos, desconfiamos que são como nós e adoramos desafiá-los a respeito. E mesmo aqueles que não se confundem com a mera celebridade, estão submetidos à mesma lógica. Como os deuses, os reis, o pai primordial.
O sensacionalismo é a forma que essa verdadeira volúpia assume nos dias de hoje, a volúpia de liquidar aquele que adoramos, a quem atribuímos nossa sorte, nosso destino, nosso descaminho. Trata-se de uma catarse – a encenação da queda de um ídolo. Talvez a atual volatilidade de nossos ídolos justifique nossa compulsão à repetição: as quedas se sucedem, se amontoam, se atropelam. Amamos o sensacionalismo sobretudo porque idealizamos o Bem e o Mal. Porque projetamos em um outro aquilo que não controlamos ou que julgamos, convenientemente, não poder controlar. Por tanto, somos insaciáveis.
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