[INT. Departamento de Polícia - CORREDOR -] NOITE
(Com algemas nos seus pulsos e tornozelos, Richard McQueen é escoltado para fora. Ele se vira e olha para a câmera.)
(BRASS fala com a câmera.)
BRASS: Sim, temos uma confissão. Ele não escolheu os pés das mulheres, os pés das mulheres o escolheram. Ele acendeu as velas, ele botou uma música, ele pensou que estava em um encontro.
PRODUTOR: (O.S.) Mas ele explicou, você sabe, porque ele fez isso?
BRASS: Ah, sim. Ah, com certeza. Sua mãe era uma prostituta, ela o colocou debaixo da cama enquanto ela fazia o seu negócio com os pés balançando na borda da cama. Ele observava seus pés, eles eram perfeitos. Você sabe, eu não sei se isso é verdade.
PRODUTOR: (O.S.) E sobre a coisa do bombeiro?
BRASS: Não sei, acho que ele queria ser um bombeiro quando crescesse. Você não quis? Veja, jurados amam explicações, eles as querem precisas e claras. Eles não querem saber que vivemos em um mundo aleatório, eles querem sentido. É muito simples.
CSI. "I LIKE TO WATCH". SCRIPT (CSI. “FETICHE”. ROTEIRO ) http://www.crimelab.nl/transcripts.php?series=1&season=6&episode=17
Em 2005 publiquei no site da Midiativa – Centro Brasileiro de Mídia Para Crianças e Adolescentes - um pequeno artigo sobre o gênero televisivo “seriado policial”, abordando alguns modelos conhecidos (http://www.midiativa.tv/blog/?p=598). O foco recaía sobre o contraste entre o modelo predominante nos anos oitenta – que privilegiava a ação, a imersão sensorial, o formato vertiginoso – e o modelo predominante nos seriados contemporâneos – investigativo, voltado para a produção de provas, de verdades, de sentidos a serem atribuídos aos atos criminosos, às obras do Mal. Os seriados policiais participam do imaginário do Mal contemporâneo.
Até certo ponto, nesse artigo, eu comemorava o que me parecia ser uma aposta na palavra como caminho tanto para se pensar o Mal como para usufruir catarticamente de fabulações acerca dele. Entre o brutamontes mais ou menos charmoso que corre atrás de bandidos e cai sobre eles sem maiores complicações dramáticas e o cientista, o médico-legista e o promotor público eivados de preocupações éticas no trabalho de produzir provas, eu tendia para a turma pensante. Ainda tendo. Considero mais interessante jogar um jogo de inteligência com o telespectador do que repetidamente limitar-se a exacerbar seus sentidos, a estressá-los.
Todavia, essa voga contemporânea que privilegia a trama, o drama e a inteligência do espectador, revela um traço, uma espécie de sintoma que assola o imaginário contemporâneo acerca do Mal: o horror ao vazio, o horror à ausência de sentido, o horror ao imprevisível, ao incontrolável.
Não se trata de uma novidade a “compulsão” do ser humano a atribuir sentido aos acontecimentos e a querer atuar preventivamente. Está conosco desde sempre. Nada de mais ou de menos. Conjuração das forças da natureza, sacrifícios a deuses, pesquisas médicas e de mercado têm no esforço de antecipação seu parentesco comum. Todavia, nossa sociedade globalizada, como nenhuma outra, tem sido capaz de produzir um volume inédito de conhecimentos e tecnologias voltados para controle e prevenção. Que fique claro que não se trata de um movimento imposto “de cima para baixo”. Nem no sentido político, nem no sócio-econômico. A demanda de controle atravessa a sociedade! Parece que quanto mais dispomos – ainda que desigualmente – de instrumentos de controle, mais clamamos por eles. Talvez porque, ainda que disponhamos de tais instrumentos, muito nos foge ao controle. E, cada vez que um grande evento de alcance coletivo ou que um irrisório acontecimento doméstico esfrega em nossas caras o limite de nosso poder sobre nosso destino, tendemos a nos sentir miseráveis, a nos revoltar e a gritar por explicações. “Quem puxou o meu tapete?” Parecemos crianças mimadas experimentando o princípio de realidade.
Hoje em dia, estamos envolvidos e nos envolvemos com mecanismos e dispositivos que parecem apontar para uma situação de transparência social – um estado, ora temido, ora desejado. Muitos demandam esse ideal de sociedade ansiando pela proteção imaginária de uma miríade de olhos vigilantes conectados em rede a defendê-lo contra todo o mal do mundo. Outros temem exatamente essa rede e seu imaginário poder infinito recaindo sobre nossos ombros, transformando-nos em autômatos, desprovidos de elã, zumbis. Não raro, um e outro – os que requerem mais controles e os que desconfiam deles - se confundem. Quer dizer, se fundem no mesmo indivíduo, em inúmeros indivíduos. Exigem proteção e denunciam a ineficácia de instrumentos e aparelhos sociais. Ao mesmo tempo, acusam a intromissão indevida dos mesmos em suas vidas. Às vezes, as coisas parecem muito confusas – e realmente o são.
Por exemplo: para muitos, a internet é um instrumento essencialmente “bom”, pois, segundo eles, nos permite caminhar na direção de uma maior transparência social, para uma situação de maior democratização da informação e da comunicação. Sem dúvida, não há como negar uma série de características extremamente positivas da internet. Contudo, há os que a consideram como parte de um sistema mais amplo de organização social, em que bancos de dados são permanentemente alimentados com informações as mais variadas ao nosso respeito, as quais podem ser cruzadas entre si e acessadas, sem a nossa permissão, de inúmeros pontos de uma imensa rede em que estamos inseridos através dos aparelhos de Estado, do sistema bancário, do sistema de saúde, de serviços e dispositivos os mais variados, como telefones com GPS etc.. Gilles Deleuze pensou esta nova organização social e a chamou “sociedade de controle”. Esta seria a forma contemporânea desenvolvida pelo capitalismo e se oporia à “sociedade disciplinar”, cuja caracterização é inspirada nos trabalhos de Foucault. A “sociedade de controle” seria a mais nova forma assumida pelo capitalismo
Segundo Delleuze, diferente da sociedade disciplinar, onde o confinamento em sucessivas instituições de moldagem dos sujeitos prevalece e a produção é o foco, na sociedade de controle, espaços abertos, fluxo contínuo e modulação subjetiva ganham o proscênio no estágio de “sobre-produção” do capitalismo (venda de serviços, de ações).
A ideia de um esforço constante de vigilância tendo por objetivo a administração de riscos, tão disseminada na cultura contemporânea, é coerente com a forma desenhada por Delleuze. Mas quando pensamos na questão do confinamento, as correspondências entre realidade e teoria se complexificam. “Formação/educação continuada”, conexões em redes de cooperação laborativa etc. assinalam transformações nos regimes de educação e trabalho que extrapolam os limites do confinamento disciplinar. Por outro lado, é fato que, embora se desenvolvam alternativas ao confinamento hospitalar e mesmo prisional, é notável tanto o número de presos confinados em sociedades como os EUA (e mesmo no Brasil), como uma espécie de pressão social pelo confinamento não só de criminosos, mas de “estranhos” e “potencialmente criminosos”. O aumento da circulação geral através do planeta e que tem lugar privilegiado nas megalópoles e cidades globais parece ter multiplicado exponencialmente o medo geral do contato com estranhos e da possível “contaminação” através dele. Ao mesmo tempo em que a tendência ao contato e ao contágio revigora-se, a tendência ao medo e a busca de isolamento e exclusão também parecem fortalecer-se. E ainda: se dispositivos digitais viabilizam que viajemos virtualmente pelo planeta a trabalho ou a lazer, o fazem sem requisitar nosso deslocamento físico, ou seja, permitindo que nos confinemos voluntariamente onde melhor nos aprouver. O trabalhador contemporâneo pode ter uma jornada de trabalho flexível e interminável – e nem precisa sair de casa.
Neste mundo de fluxos múltiplos, contínuos, em rede, a realidade do corpo permanece nos assombrando com a perspectiva da finitude. Apesar de todas as conquistas biomédicas, da bioquímica, da bioengenharia, de toda sorte de próteses e engenhos úteis para prolongar e aumentar a chamada qualidade de vida, ainda não superamos a barreira da morte, se é que algum dia a superaremos. A morte e todos os medos que, em última e primeira instância, dela provêm continuam nos assombrando.
A vigilância permanente, muito mais refinada no contexto da “sociedade de controle” do que no da “sociedade disciplinar”, é estimulada e requisitada por uma espécie de medo latente que perpassa a sociedade e domina a contemporaneidade. Tão afeito à ideologia da rede, a qual nos é tão cara, o fantasma do contágio se dissemina pelo corpo social. Hoje, o temor da epidemia sanitária não é menor do que o da epidemia comportamental.
Aqui tomo a liberdade de usar a expressão “sociedade de controle” em um sentido que não é aquele estabelecido por Deleuze. Penso em conferir a ela um sentido sobretudo empírico. Deixá-la desviar. Neste desvio, ela é fato e ficção. É fato se considerarmos todo arsenal de saberes, técnicas e apetrechos que desenvolvemos e que dominam o ambiente em que vivemos. Eles se desdobram em nossa subjetividade, na forma de forças que nos governam, na feição do campo de possibilidades que se nos apresentam etc.. É ficção porque é um ideal – sonho ou pesadelo – que ora perseguimos, ora nos sentimos perseguidos por ele. 1984 e Admirável Mundo Novo são exemplos de fabulações sobre um mal que podemos facilmente identificar com tal rubrica. E é ficção sobretudo porque a vida, o mundo, o tempo teimam em nos surpreender, em nos pegar “com as calças nas mãos”.
Fato e ficção, a sociedade de controle parece privilegiar a retórica do medo. Justamente quando muitos indicadores (históricos, científicos etc. [p.ex.: p.199, SENNETT, Carne e pedra - http://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=aer_rXn_OZoC&oi=fnd&pg=PA7&dq=richard+sennett+carne+e+pedra&ots=yS_k9tR-xp&sig=2QVjNYp5DQrEFfRiZpmD7ptZAXs#v=onepage&q&f=false]) sugerem que jamais estivemos tão seguros, somos assaltados por uma sensação aguda de fragilidade, de impotência. Não raro, o medo se converte em pânico, que se converte em revolta, que se transmuta em fúria. E explodimos, perdemos o controle. O troglodita revive em nós. A razão míngua. Mas, ainda assim, racionalizamos: a desrazão é do outro, está no outro. Nós somos as vítimas; eles, os culpados.
A sede de investigação e interpretação patente nos seriados policiais contemporâneos, herdeiros do romance de detetive do século XIX, configura uma tentativa de racionalização empreendida em um contexto cultural global em que uma espécie de “fobia” parece dominar. O mal que pode ser nomeado, atribuído a um sujeito e, sobretudo, explicado é uma ideia tranquilizadora. O mal domesticado se contrapõe ao mal gratuito, que não se justifica nem busca se justificar, ao puro Mal.
Um momento raro e precioso na TV aconteceu no décimo sétimo episódio da sexta temporada de CSI – “Fetiche”. Enquanto investigavam um caso, os CSIs eram seguidos por uma equipe de um reality show. Ao fim da investigação, o capitão Jim Brass, interpretado pelo ator Paul Guilfoyle, é indagado sobre a importância do trabalho dos CSIs para o estabelecimento dos motivos de cada crime ocorrido em Las Vegas. Brass, responde mais ou menos o seguinte: que essa história de motivos, de explicação, é uma ilusão da qual as pessoas precisam, mas que eles – os profissionais - bem sabem que a maior parte do que acontece não faz qualquer sentido, não tem motivo ou explicação, que são acontecimentos aleatórios. Creio que Brass concordaria com a ideia de que o ser humano rejeita profundamente o aleatório - diante dele, desmonta.
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