segunda-feira, 19 de setembro de 2011

No silêncio escuro

No silêncio escuro, senti saudades de casa, da mesa da cozinha vestida com a vistosa toalha em tons de verde e ouro e das portas escancaradas para o vento noturno - frio, morno, quente ou gelado. Mais que a propriedade jurídica, o que define ser o dono da casa é a liberdade, o sentir-se à vontade em não pedir licença para algumas trivialidades, entre tantas: acordar no meio da madrugada, escancarar portas e janelas, acender uma única lâmpada, sentar-se em um canto e pôr-se a escrever até a hora que o sono permitir. Talvez, enquanto a caneta espera sobre o caderno – um luxo de folhas encorpadas com capa dura -, preparar um chá de ervas, beber um cálice de porto ou um copo de vinho tinto sem o embaraço de qualquer tipo de assédio, sem o constrangimento de um pedido de explicação.

Meus olhos teimavam em não se fechar e eu me deleitava em antecipar possíveis conseqüências da minha falta de sono, da minha inquietude, da minha vontade de escrever não sei bem o quê. Escrever, talvez, alguma verdade, algum segredo, alguma obviedade fulminante. Sofria as delícias da tortura da antecipação, me agoniava, me sentia derrotada, maldizia meu algoz imaginário – imaginário? Repetidamente, antecipava e acabava por desistir de abrir a porta do quarto e buscar um lugar onde pudesse ficar só comigo mesma na casa dela. Imaginava a chave estalando na fechadura, a lingüeta puxada pela fechadura arranhando o metal encaixado no batente da porta, a porta gritando um lancinante rangido amplificado pelo breu profundo da casta veste noturna da pequena cidade de Minas Gerais. Imaginava meus passos descalços - quase felinos – perscrutados pelos ávidos ouvidos dela. Imaginava outras tantas fechaduras, maçanetas, lingüetas, portas, dobradiças, rangidos, luzes e ela trôpega me interpelando qual assombração emergida das trevas. Imaginava seu tom acusatório, a voz modulada com precisão dramática derramando-se em uma perpétua ladainha autocomiserativa, auto-indulgente, autopiedosa. Imaginava meu desgosto ético e estético diante disso tudo. Tanto imaginei e, certamente, me comprazi em imaginar, que o peso do corpo desgastado pelo dia mais o prazer doentio em me auto-espicaçar com essas ninharias venceram a lassidão de um desejo tão embaçado. O prazer e a culpa em imaginá-la tão terrível consumiram minha vontade, me sufocando em uma angústia irresoluta.

Virei-me para um lado e para outro. Encostei-me no corpo quente dele – sempre tão quente – já entregue ao sono. Meus olhos fechados ouviam o som confuso da conversa dos adolescentes postados na rua, o qual soava como punhaladas. Suas vozes atravessavam o acanhado corredor entre o portão de serviço e o pátio térreo. E subiam em um vôo cego ignorando paredes, escadas, vidraças e cortinas. E corriam pelas superfícies da casa, abraçando-a, até chegarem aos meus ouvidos. E quase atravessavam a minha cabeça. Prenunciando o pouco caso deles em relação aos apelos que eu fizesse a um abstrato senso de civilidade que, irritada, não supus possuírem ou compreenderem, imaginei chamar a polícia, jogar um balde de água fria neles, ridicularizar seu sotaque caipira e o fato de que aquela algaravia mais parecia um cacarejar sôfrego que uma conversa, uma fala, uma manifestação viva da língua portuguesa, de alguma língua, de qualquer língua. Fiquei intrigada com minha dificuldade – quiçá impossibilidade – de discernir uma palavra que fosse, uma expressão, uma pequena frase no meio daquele amálgama sonoro cheio de erres e ganidos e risos nervosos.

Agora que aquela noite tornou-se passado, a lembrança recente do vozerio juvenil se agarra a uma imagem bem mais remota da qual é difícil – e nem desejo – me desvencilhar: as orgias caninas que se desenrolavam pelas ruas da cidade – dessa mesma cidade, tão diversa naquele tempo – diante de meus gulosos olhos infantis. Crianças e adolescentes rindo, se deliciando, correndo atrás dos bizarros comboios caninos, quais cães. Miragens de vetustas senhoras, cultivando um luto sem prazo, batendo janelas, brandindo vassouras de piaçava, lançando baldes e mais baldes de água fria nas matilhas casualmente possuídas pelo perfume de cadelas no cio. Imaginárias avós sem netos, sem filhos, eternas tias, ultrajadas pelo descabelado cortejo de infantes celebrando o desenfreado coito das alimárias. Mais que os cães, nós éramos uma vergonha, a vergonha delas.

E, naquela noite escura, enquanto ele dormia pesado, seu corpo mal reagindo às provocações de minhas carícias preguiçosas, eu ouvia aquele balbuciar gritado, experimentava a sua solidez aparentemente desconexa. O tom da conversa mal variava. A partir de certo momento, entremeava-se com longos silêncios. As raras variações de tonalidade se faziam notar mais nas vozes individuais, todas tão parecidas, todas emboladas naquele falar com jeito estrangeiro, coisa de bebês na creche, de bicho assustado no meio da feira livre. Vontade de ficar junto, de papaguear, de emendar um monte de fios soltos. O grupo mal espalhado em um canto da ruela estreita berrando toda aquela energia juvenil na noite que quase virava madrugada. Nem sei se eles se davam conta disso. E eu ouvindo sem discernir palavra. E eles se entendendo, batucando sua música gutural na minha cabeça. Minha cabeça, a essa altura, quase cinema. Já não conseguia pensar em polícia, nem em balde de água fria, muito menos, em ridicularizá-los.

Bem depois, noutra noite, diante do caderno em que, finalmente, a coragem me fez escrever, me veio Roman Jakobson e sua comunicação fática, impulso para ligação, para ficar junto, demonstração cabal do desejo de ficar junto. Mensagem primária em que a expressão reina sobre o verbo.

Percebo agora que, naquela noite, uma súbita generosidade transpirava em mim à medida que me lembrava de minha própria adolescência nessa mesma – ou quase a mesma - cidade pequena. E muito aquém de minha adolescência. Conversa na rua de manhã, de tarde ou de noite. Um pouco de bagunça, brincadeira. Não pouca irreverência. Mais conversa, ação, palavra em ação – aos borbotões. E o footing noturno em volta do quarteirão inflamado, o muro da viúva, ver e ser visto, a cerquinha do bar da moda, muito papo cabeça e um monte de recém ex-drogados cheios de causos para contar. Às vezes, o bar, a boite enfumaçada, a discoteca. O famigerado tobomóvel e o primeiro beijo no seio, a barba dele arranhando - ele que já deixou viúva e filhos. Minha melhor amiga fingindo que observava a vista quase aérea. E eu decolando. Depois, mais centenas de beijos, os intermináveis bailes carnavalescos, o medo e o desejo disputando cada centímetro quadrado do meu corpo encharcado de hormônios e curiosidade, a volta para casa com a parada na padaria para comprar da primeira fornada do dia e muito leite fresco. Então, dei para lembrar que, em poucos anos, nossas crianças serão adolescentes. Elas e seus amigos. Eu e meus amigos.

Nessa altura, o cacarejar dos meninos corria espaçado por compridos silêncios, risadas constrangidas e sons de tabefes sem convicção. Um joguinho de sedução. Nem me dei ao trabalho de imaginar o que poderiam estar experimentando nos desvãos da vizinhança. Nem importava. Importava tão somente minha estranha certeza de que eles estavam ali dando alguns tímidos passos, primeiros tímidos passos em direção a um mundo sonhado maior. Talvez porque tenha sido assim comigo. Talvez porque seja assim com todos. Será? Nem sei. Um mundo sonhado maior, ampliado, em permanente expansão. Maior que qualquer coisa. Nem sei o quê. Pois nem sei quem são, que bagagem carregam além do sotaque carregado do interior dessa Minas – Minas que é toda interior.

Eram meninos e sua balbúrdia tolinha já quase me embalava. Eram meninos e meninas e sua vontade de estar juntos, de ser outra coisa, de dar um passo para fora do quintal já me enternecia. Eram meninos crescendo e eu consegui me deixar tocar por sua força resoluta, por sua crueza e inocência, por sua imaginada crença em algum mundo maior que o quintal acanhado, que a ruela em curva ascendente, que a cidadezinha interiorana, que seus corpos, que já deixaram de ser corpos de criança. Então, consegui dormir.

Consegui dormir em paz por tê-los deixado em paz, por não atrapalhar seus primeiros passos, por não intimidá-los. Consegui dormir apesar de viver teimando em recordar a fúria que me rasgava, uma falta maior que o deserto do Saara, uma solidão rascante, uma vontade de bater a porta atrás de mim e ir para não sei onde. No fim das contas, entre um balde d’água fria ali e outro acolá, como os persistentes comboios caninos e seus séqüitos de infantes irreverentes, talvez tenha sido isso exatamente o que fiz.

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