No silêncio escuro, senti saudades de casa, da mesa da
cozinha vestida com a vistosa toalha em tons de verde e ouro e das portas
escancaradas para o vento noturno - frio, morno, quente ou gelado. Mais que a
propriedade jurídica, o que define ser o dono da casa é a liberdade, o sentir-se
à vontade em não pedir licença para algumas trivialidades, entre tantas:
acordar no meio da madrugada, escancarar portas e janelas, acender uma única
lâmpada, sentar-se em um canto e pôr-se a escrever até a hora que o sono
permitir. Talvez, enquanto a caneta espera sobre o caderno – um luxo de folhas
encorpadas com capa dura -, preparar um chá de ervas, beber um cálice de porto
ou um copo de vinho tinto sem o embaraço de qualquer tipo de assédio, sem o
constrangimento de um pedido de explicação.
Meus olhos teimavam em não se fechar e eu me deleitava em
antecipar possíveis consequências da minha falta de sono, da minha inquietude,
da minha vontade de escrever não sei bem o quê. Escrever, talvez, alguma
verdade, algum segredo, alguma obviedade fulminante. Sofria as delícias da
tortura da antecipação, agoniava-me, sentia-me derrotada, maldizia meu algoz
imaginário – imaginário? Repetidamente, antecipava e acabava por desistir de
abrir a porta do quarto e buscar um lugar onde pudesse ficar só comigo mesma na
casa dela. Imaginava a chave estalando na fechadura, a lingueta puxada pela
fechadura arranhando o metal encaixado no batente da porta, a porta gritando um
lancinante rangido amplificado pelo breu profundo da casta veste noturna da
pequena cidade de Minas Gerais. Imaginava meus passos descalços - quase felinos
- perscrutados pelos ávidos ouvidos dela. Imaginava outras tantas fechaduras,
maçanetas, linguetas, portas, dobradiças, rangidos, luzes e ela trôpega me
interpelando qual assombração emergida das trevas. Imaginava seu tom
acusatório, a voz modulada com precisão dramática derramando-se em uma perpétua
ladainha autocomiserativa, auto-indulgente, autopiedosa. Imaginava meu desgosto
ético e estético diante disso tudo. Tanto imaginei e, certamente, me comprazi
em imaginar, que o peso do corpo desgastado pelo dia mais o prazer doentio em
me auto-espicaçar com essas ninharias venceram a lassidão de um desejo tão
embaçado. O prazer e a culpa em imaginá-la tão terrível consumiram minha
vontade, sufocando-me em uma angústia irresoluta.
Virei-me para um lado e para outro. Encostei-me no corpo
quente dele – sempre tão quente – já entregue ao sono. Meus olhos fechados
ouviam o som confuso da conversa dos adolescentes postados na rua, o qual soava
como punhaladas. Suas vozes atravessavam o acanhado corredor entre o portão de
serviço e o pátio térreo. E subiam em um vôo cego ignorando paredes, escadas,
vidraças e cortinas. E corriam pelas superfícies da casa, abraçando-a, até
chegarem aos meus ouvidos. E quase atravessavam a minha cabeça. Prenunciando o
pouco caso deles em relação aos apelos que eu fizesse a um abstrato senso de
civilidade que, irritada, não supus possuírem ou compreenderem, imaginei chamar
a polícia, jogar um balde de água fria neles, ridicularizar seu sotaque caipira
e o fato de que aquela algaravia mais parecia um cacarejar sôfrego que uma
conversa, uma fala, uma manifestação viva da língua portuguesa, de alguma
língua, de qualquer língua. Fiquei intrigada com minha dificuldade – quiçá
impossibilidade – de discernir uma palavra que fosse, uma expressão, uma
pequena frase no meio daquele amálgama sonoro cheio de erres e ganidos e risos
nervosos.
Agora que aquela noite tornou-se passado, a lembrança
recente do vozerio juvenil se agarra a uma imagem bem mais remota da qual é
difícil – e nem desejo – me desvencilhar: as orgias caninas que se desenrolavam
pelas ruas da cidade – dessa mesma cidade, tão diversa naquele tempo – diante
de meus gulosos olhos infantis. Crianças e adolescentes rindo, se deliciando,
correndo atrás dos bizarros comboios caninos, quais cães. Miragens de vetustas
senhoras, cultivando um luto sem prazo, batendo janelas, brandindo vassouras de
piaçava, lançando baldes e mais baldes de água fria nas matilhas casualmente
possuídas pelo perfume de cadelas no cio. Imaginárias avós sem netos, sem
filhos, eternas tias, ultrajadas pelo descabelado cortejo de infantes
celebrando o desenfreado coito das alimárias. Mais que os cães, nós éramos uma
vergonha, a vergonha delas.
E, naquela noite escura, enquanto ele dormia pesado, seu
corpo mal reagindo às provocações de minhas carícias preguiçosas, eu ouvia
aquele balbuciar gritado, experimentava a sua solidez aparentemente desconexa.
O tom da conversa mal variava. A partir de certo momento, entremeava-se com
longos silêncios. As raras variações de tonalidade se faziam notar mais nas
vozes individuais, todas tão parecidas, todas emboladas naquele falar com jeito
estrangeiro, coisa de bebês na creche, de bicho assustado no meio da feira
livre. Vontade de ficar junto, de papaguear, de emendar um monte de fios
soltos. O grupo mal espalhado em um canto da ruela estreita berrando toda
aquela energia juvenil na noite que quase virava madrugada. Nem sei se eles se
davam conta disso. E eu ouvindo sem discernir palavra. E eles se entendendo,
batucando sua música gutural na minha cabeça. Minha cabeça, a essa altura,
quase cinema. Já não conseguia pensar em polícia, nem em balde de água fria,
muito menos, em ridicularizá-los.
Bem depois, noutra noite, diante do caderno em que,
finalmente, a coragem me fez escrever, me veio Roman Jakobson e sua comunicação fática, impulso para
ligação, para ficar junto, demonstração cabal do desejo de ficar junto.
Mensagem primária em que a expressão reina sobre o verbo.
Percebo agora que, naquela noite, uma súbita generosidade
transpirava em mim à medida que me lembrava de minha própria adolescência nessa
mesma - ou quase a mesma - cidade pequena. E muito aquém de minha adolescência.
Conversa na rua de manhã, de tarde ou de noite. Um pouco de bagunça,
brincadeira. Não pouca irreverência. Mais conversa, ação, palavra em ação – aos
borbotões. E o footing noturno em
volta do quarteirão inflamado, o muro da
viúva, ver e ser visto, a cerquinha do bar da moda, muito papo cabeça e um
monte de recém ex-drogados cheios de causos para contar. Às vezes, o bar, a boite enfumaçada, a discoteca. O
famigerado tobomóvel e o primeiro beijo no seio, a barba dele arranhando - ele
que já deixou viúva e filhos. Minha melhor amiga fingindo que observava a vista
quase aérea. E eu decolando. Depois, mais centenas de beijos, os intermináveis
bailes carnavalescos, o medo e o desejo disputando cada centímetro quadrado do
meu corpo encharcado de hormônios e curiosidade, a volta para casa com a parada
na padaria para comprar da primeira fornada do dia e muito leite fresco. Então,
dei para lembrar que, em poucos anos, nossas crianças serão adolescentes. Elas
e seus amigos. Eu e meus amigos.
Nessa altura, o cacarejar dos meninos corria espaçado por
compridos silêncios, risadas constrangidas e sons de tabefes sem convicção. Um
joguinho de sedução. Nem me dei ao trabalho de imaginar o que poderiam estar
experimentando nos desvãos da vizinhança. Nem importava. Importava tão somente
minha estranha certeza de que eles estavam ali dando alguns tímidos passos,
primeiros tímidos passos em direção a um mundo sonhado maior. Talvez porque
tenha sido assim comigo. Talvez porque seja assim com todos. Será? Nem sei. Um
mundo sonhado maior, ampliado, em permanente expansão. Maior que qualquer
coisa. Nem sei o quê. Pois nem sei quem são, que bagagem carregam além do
sotaque carregado do interior dessa Minas – Minas que é toda interior.
Eram meninos e sua balbúrdia tolinha já quase me
embalava. Eram meninos e meninas e sua vontade de estar juntos, de ser outra
coisa, de dar um passo para fora do quintal já me enternecia. Eram meninos
crescendo e eu consegui me deixar tocar por sua força resoluta, por sua crueza
e inocência, por sua imaginada crença em algum mundo maior que o quintal
acanhado, que a ruela em curva ascendente, que a cidadezinha interiorana, que seus
corpos, que já deixaram de ser corpos de crianças. Então, consegui dormir.
Consegui dormir em paz por tê-los deixado em paz, por não
atrapalhar seus primeiros passos, por não intimidá-los. Consegui dormir apesar
de viver teimando em recordar a fúria que me rasgava, uma falta maior que o
deserto do Saara, uma solidão rascante, uma vontade de bater a porta atrás de
mim e ir para não sei onde. No fim das contas, entre um balde d’água fria ali e
outro acolá, como os persistentes comboios caninos e seus séquitos de infantes
irreverentes, talvez tenha sido isso exatamente o que fiz.
"Há mensagens que servem fundamentalmente para prolongar ou interromper a comunicação, para verificar se o canal funciona ('Alô, está me ouvindo?'), para atrair a atenção do interlocutor ou afirmar sua atenção continuada ('Está ouvindo?' ou, na dicção shakespereana, 'Prestai-me ouvidos!' - e, no outro extremo do fio, 'Hm-hm!'). Este pendor para o CONTATO ou, na designação de Malinowski, para a função FÁTICA, pode ser evidenciada por uma troca profusa de fórmulas ritualizadas, por diálogos inteiros cujo único propósito é prolongar a comunicação."
Jakobson, Linguística e Comunicação

2 comentários:
oi. vou trocar o link do teu blog para este...
bjos,
Elton
Como é q eu coloco links aq??? Não estou vendo a opção!!! ARGH! Vou procurar!!!
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