domingo, 4 de abril de 2010

deserto

Olhava para o écran e sentia-se um lixo. No momento, caminhava por um longo deserto cerebral. Não sabia dizer se era falta ou excesso. Às vezes, se equivalem. Sentia falta de sonhos. Sentia falta de alguma falta de bom senso. Pelo menos voltara a ter pesadelos dos quais se recordava. O último era o sumiço da filha da vizinha. A vizinha estava muito fotogênica no sonho. Indagava-se o motivo de sua antipatia pela vizinha – a da realidade, não a do sonho. Não que a vizinha real fosse uma pessoa simpática e agradável. Não era. Era visivelmente arrivista, pretensiosa e sua falta de recursos “do espírito” era patente. E isso era uma coisa que valorizava: “espírito”. Ainda assim continuava a intrigar-se com a implicância que nutria contra a mulher. Apesar de mal conhecê-la, não lhe era difícil fazer um extenso rol dos defeitos da outra, mas sabia muito bem que tantos atributos negativos não justificavam o que sentia. Ninguém tem tanta aversão pelos outros em função de suas faltas – das faltas dos outros. Do mesmo modo que ninguém é fortemente atraído meramente pelas virtudes alheias. Eram máximas “de botequim” as quais apreciava. Pérolas de bom senso extraídas do senso comum etílico dos botecos de juventude. Ou não. Talvez tenha aprendido isso ao longo da vida. O que naquela mulher lhe era tão atraentemente repulsivo? É óbvio que considerava a possibilidade de que identificava na fulana alguma característica de si mesma a qual abominava. Exorcizava o mal que via sem si abominando a outra. Mas o que exatamente na outra – e nela mesma - era o mal, o feio? A “falta de espírito”? A arrogância? O ridículo de fraquezas mal disfarçadas? No sonho, ela era expectadora do sofrimento da outra – da outra que, certamente não era a outra da realidade. Chegou a desconfiar que, no sonho, a outra estava no lugar dela mesma, da que sonhava. Pode ser – pensou. Mas por que a outra sofria tão cool? E por que o sofrimento da outra lhe era tão distante? Súbito, parecia de volta àquele território árido contemplando a dificuldade olhos nos olhos. Ela estava lá, tão longe e tão perto. Tão absoluta como o céu suburbano mítico de sua infância recontada. Capaz de roubar seu balão. Capaz de lhe fazer sentir a sua pequenez. Capaz de lhe fazer astronauta e mesmo parte de tudo. Agora, faltava alguma coisa. A ela e a mulher do sonho.

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