Coloquei o mais velho para dormir. Desliguei a luz do quarto azul. Dei uma beijoca no meu lindão e um boa noite cheio de mel. Apertei o botão do CD-player e fechei a porta atrás de mim. Entrei no quarto amarelinho, onde as pequenas gêmeas dividiam o berço animadamente. Aliás, as duas estavam animadas demais para a hora. Já deveriam estar dormindo há muito tempo. Liguei o CD-player antes de tirá-las no berço. A música não era a mesma de que Caio gosta. Ele prefere Bach. Elas só dormem com Vivaldi. Eu e Armando crescemos com o rádio, embora as estações fossem diferentes. Flor se balançava agarrada à grade, enquanto Cristal, com os dentinhos recém-ganhos, tentava arrancar o rabo do urso de pelúcia. Acendi o abajur de estrelinhas, apaguei a luz principal, peguei as meninas e me sentei na poltrona florida com ambas no colo. Meio atrapalhada, suspendi a ampla camiseta e pluguei cada qual em uma das fartas tetas que já nem parecem minhas. E nem sei se realmente o são. Rapidamente, as gatinhas dormiram com o enjoativo leitinho escorrendo para fora das boquinhas rosadas. Respirei fundo, me concentrei e me levantei de uma só vez. Ou quase. Dei umas duas voltas pelo quarto. Foi o suficiente para um arroto escandaloso de Flor e dois arrotinhos fedidos de Cristal. Com jeito, coloquei cada qual no seu respectivo lado do berço. Primeiro, Flor; depois, Cristal. Limpei suas boquinhas, olhei-as enchendo o berço e pensei que teremos que comprar duas caminhas em breve. Saí do quarto em silêncio, fechei a porta e corri para a cozinha. Enchi com água fresca um imenso copo. Bebi tudo sem sequer respirar. Repeti a operação mais duas vezes. Então, fui para nosso quarto.
A luz estava acesa. Armando estava recostado numa montanha de almofadas, entretido com um livro de Bataille lido e relido tantas e tantas vezes. Joguei-me na cama. Caí de bruços, perpendicular ao corpo moreno de Armando, com minha cara na altura do umbigo dele. Olhei para o belo e profundo umbigo, cercado de lisos pêlos negros. Respirei fundo, olhei para a cara de Armando e perguntei: "Você não vai mesmo?" Repetindo o gesto conhecido de longa data, ele me olhou nos olhos e, com um ar blasé, depositou o Bataille sobre o atulhadíssimo criado-mudo, tirou os óculos, largou-os sobre o livro desmantelado enquanto, com a outra mão, apertava seu terceiro olho, lá onde o nariz encontra a testa. Após reacomodar-se nas almofadas, respondeu: "Não, Mariinha. Quem vai ficar com as crianças?" Renitente, argumentei meio sem propósito, quase me desculpando: "Eu poderia ter chamado a Lucinha ou mesmo a mamãe. Era só você ter dito que topava ir comigo..." Franzindo o nariz, Armando contra-argumentou: "Eu nem conheço o cara! Além do mais, o convite chegou só no seu nome!" E eu: "E alguém precisa conhecer o artista para ir ao vernissage? E não me venha com conversa fiada! Ele ligou aqui pra casa e convidou nós dois. Não foi só..." Sarcástico, Armando rebateu: "Os dois? Não é ele que acabou de ficar viúvo? Só me convidou pra não pegar mal, caso não lhe agradasse a idéia..." Respondi gritando: "Que idéia? Tá maluco? Você e seu ciúme doentio! Não entendo isso! Você é convidado, eu insisto pra você ir, você teima em não ir e ainda fica me acusando. Vai fazer análise! Vai..." Armando se esparramou na cama enquanto pedia silêncio: "SHIIII! Mariinha! Daqui a pouco, você acorda as meninas! SHIIII!! Desse jeito, você acorda até o dorminhoco do Caio!" Calei-me imediatamente. Uma preguiça oceânica me esmagava contra o colchão cheirando a alfazema. Acomodei-me no meu lado da cama, estiquei o braço e desliguei o interruptor. No escuro quase absoluto, um longo silêncio se impôs.
Dois, três ou quatro minutos se passaram...
No breu, vez por outra, gemidos impacientes entrecortavam o som ritmado de nossas respirações. E aquele som borbulhante me dava ganas de rir, mas só consegui ofegar mais e mais. O suor era tanto que escorregávamos um no outro. Um cheiro acre-doce encharcou o ar. Estrelinhas piscavam na noite do meus olhos.
Uma dormência gostosa, um apagão da minha tão sempre alerta consciência. Amém!
De repente, pulei da cama e tomei um banho gelado. Estava pronta para sair.
Decidi ir à festa, ao vernissage.
Foi uma experiência interessante, embora não tenha sido o que esperava. Nunca é. Mas aí é que reside a graça! Quase não fui, pois Armando não tava a fim de ir e não foi mesmo. E me deu aquela preguiça monstra. Mas achei tão ridículo não ir. O tal do café fica tão pertinho, a menos de dez minutos a pé. Fiz uma produção meio esquisita: saia longa de jeans desbotado com duas fendas, um cinto de couro preto grossão com um fivelão prateado enorme, uma blusinha de malha prateada, jaqueta velhíssima de black-jeans, meia-calça preta e tênias all-star. Esquisito, né? Muito. Eu sei. O Armando disse que estava legal, mas acho que ele já estava dormindo mesmo. Ele sempre diz que estou legal. Acho que se amarrar um lençol como uma túnica romana e calçar umas havaianas ele dirá que estou ótima. Resolvi ir sem bolsa na esperança de não criar expectativas nos virtuais assaltantes locais. Coloquei o celular num bolso, a carteira noutro, uma caneta num terceiro. E lá fui eu. Quase onze da noite. Rua cheia. Passo ao lado de uma pizzaria e quem vejo? Um membro da minha banca de doutorado comendo pizza com uma senhora e dois jovens! Logo ele! Um cara finérrimo. Um metido simpático. Um tipo que você jamais imagina numa noite de sábado enfiado numa mega-pizzaria. Já foi até diplomata. Fiquei tentada a entrar na pizzaria pra dar um alô, mas me contive. Cheguei à porta do tal café e fui recebida por um rapaz forte e alto vestido com um belo terno preto. Dei meu nome. Daí, ele se vira para mim e pergunta cheio de autoridade:
"Cadê o seu marido? Ele está aqui na minha lista!"
Vê se pode!
Precisava ver a minha cara!
O pessoal lá dentro achou até que eu tivesse sido assaltada!
Rendeu uma bronca extra no Armando!
Mas o vernissage foi bom. O vinho estava ótimo. A galera estava a mil. As obras...
(homenagem à Malu, que nasceu hoje, aqui no Rio)
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