COMPANHEIROS
(posterior a algumas visitas à capital federal)
Passava de duas da madrugada e o convidado principal não chegava. Há muito, eu perdera a esperança de encontrar uma bóia salva-vidas. Ficara lá por inércia, vagando entre um segredo de Estado e outro – segredos de Polichinelo. Ondas de idiotice entremeadas com marolas de bom-mocismo e maremotos de esperteza tornavam meu mau-humor cada vez mais pesado. Lutando contra a gravidade, na tentativa de escapar do sofá branco antes do iminente afogamento no denso fumo dos incansáveis cubanos do próspero lobista ex-guerrilheiro, percebi que não era a única criatura incomodada com a carregada atmosfera local. Tentei refletir acerca do metralhar de adjetivos depreciativos disparados por meus pensamentos. Temia minha arrogância isolacionista, enquanto observava o tom verdolengo pálido quase cinza da tez emurchecida daquele inusitado companheiro de infortúnio. Impassível, sua silhueta longilínea sugeria uma introspecção estranha àquela espetacular mixórdia. Contudo, o ar o envenenava. Postado ao seu lado durante toda a efeméride, o largo lobista descarregara quilos das preciosas cinzas de seus cortos aos pés do pobre magrelo. Visei o grosseirão e lancei um olhar de nojo que suspeito não ter vencido a cortina de fumaça que protegia o imponente prócer. Não bastasse isso, algumas prestimosas modelos, aproveitando-se da discrição do esverdeado, encharcaram-lhe com as calorias etílicas dos drinks que não ousavam recusar com medo de desagradar seus clientes.
- Obrigada, paizinho! – sussurrou uma.
Borboleteou os olhinhos, fez uma voltinha estudada. E a beldade turbinada despejou a bomba no magricela.
O coitado, incapaz de dizer não, estava visivelmente mareado.
Revoltei-me.
Num arroubo de heroísmo, dirigi-me a ele sem qualquer cerimônia, sem preconceito, sem pensar nas consequências. Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio.
Embora a súbita manifestação de minha maldita vocação messiânica me incomodasse, sentia que era o certo a ser feito. Tratava-se de salvá-lo, ou melhor, de salvar a mim mesmo através dele.
No avião, por algum milagre, quase vazio, a comissária permitiu que ele viajasse ao meu lado. Permanecemos mudos. Prescindimos de palavras. Senti uma paz inédita, como se o tempo houvesse parado. Senti-me fruindo plenamente sua presença. No frio da classe executiva, por um instante, nossos corpos se tocaram. Cutucado, um arrepio percorreu meus nervos. Fui tomado pela certeza inelutável de que, a partir dali, nada seria como antes.
Uma semana depois, sua recuperação era evidente. Toda aquela luz derramada sobre nós, a secura do ar azul absoluto, o vento farto que adornava o silêncio daquela árida paragem, tudo isso e o gozo que transbordava meu olhar lhe infundiram um vigor irrefreável. Antes do fim da segunda semana, uma imensa flor branca desabrochava no alto de um de seus viçosos braços verdes espinhudos.
Com orgulho, me deleitava à visão daquele fabuloso cacto cujo nome e sobrenome ainda hoje desconheço.
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