sábado, 17 de abril de 2010

50 anos de Brasília

DIGRESSÕES MÍTICO-AFETIVAS SOBRE UMA CIDADE MONUMENTO(um texto anterior às visitas que fiz à capital federal)

Meu conhecimento de Brasília não é in loco. O único chão que pisei em Brasília foi o do aeroporto. Um chão de passagem. Eu tinha pressa e cansaço. Todos tinham pressa e cansaço - era uma noite de quinta-feira. E as quintas-feiras de Brasília são um mito - o dia da fuga. Eu esperava a conexão. Tantos ansiavam sôfregos por partir, por retornar a algum outro lugar. Olhos ávidos na tabela de voos. Celulares e pastas nervosas. Rostos conhecidos, rostos típicos, rostos de passagem. Eu perscrutava. Filas tensas, esbarrões, encontrões, empurrões. Quase todos se descuidaram da civilidade. Ela evadira-se-lhes das memórias.

Vencida a irritação geral, adentrei o avião. Pequeno, magro, quase raquítico. Sentei no meu lugar e esperei. E esperei. E continuei esperando até que um bem humorado comandante resolveu se apresentar e nos comunicar que teríamos que esperar mais ainda, pois, se o problema era pequeno, não podia ser ignorado sob pena de pane no ar. Ah, bom! Resignamo-nos todos, ainda que uma mulher revoltada tenha saído em protesto para, dali à uma hora, voltar cabisbaixa com a falta de alternativa. Enquanto esperava, dei para observar minuciosamente as mãos de uns tantos passageiros e tecer conjecturas sobre suas vidas, seus gostos, suas ideias. Dois pares concentraram minha atenção: as mãos enormes, brancas, visivelmente macias, de dedos muito grossos e brutos de um homem com cara de lobista ou de algum outro bicho profissional de bastidores; as mãozinhas pequenas, bronzeadas, nodosas, com um jeito de garras de ave de rapina, enfeitadas com unhas de um esquisito colorido e quilos de ouro e pedras de uma senhora sulista que fugia para o calor da região norte. Enquanto esperava mais ainda, eu revia mentalmente a imagem iluminada da cidade espraiada sobrevoada no pouso. Era estranha, quase triste. Uma coisa rasa, enorme, alastrada, esparsa. Parecia um gigantesco mapa, um campo de pouso intergaláctico. Fazia me sentir solitária, pequena, destemida. Súbito, o avião pôs-se a correr sem muita vontade e foi se erguendo tímido, débil, lasso. Pela primeira vez na vida, senti medo em uma decolagem. Parecia que o aparelho não conseguiria subir o suficiente e que nos esborracharíamos no meio daquela planura toda. Mas o temível Fokker subiu e sustentou-se lá em cima. Quase passado o susto, ainda pude olhar mais uma vez aquele desenho de luzes tão irreal.

Quando eu era criança, as linhas de Brasília me encantavam. Sua grandiosidade me maravilhava. Brasília era um dos signos magnos do meu Brasil moderno. E parecia de brinquedo, uma maquete gigantesca, um alvo monumento futurista pousado na terra vermelha. Lúcio Costa, Niemeyer, e Juscelino eram palavras mágicas.

Aos cinco... seis... sete anos, eu adorava ser moderna. Era uma mistura de astronauta com balão de gás colorido subindo ao infinito azul, de fábrica de sorvete Kibon com gráfica de editora infantil cheirando a papel novo, de Aero Willis com linha de produção da Coca-Cola, de reportagem ilustrada sobre a CSN com reclame de eletrodomésticos GE, de sabonete Eucalol com decalque de ursinho no azulejo do banheiro, de supermercado de gôndolas abarrotadas com personagens Disney patinando no Holiday On Ice, de iogurte Vigor em caixinha com camiseta Hering estampadinha, de cheiro de Mandiopan estufando na frigideira com a chamada para o Túnel do Tempo, de conversível vermelho do amigo solteirão do pai com a atraente parafernália da seção bancária, de estampa Pucci em cores cítricas no vestido démodé que a mãe aposentou com sundae gigante depois da natação no comprido balcão da lanchonete estilo anos 50, de parentada no sábado na churrascaria lotada com estrogonofe no almoço de domingo no clube, de Perdidos no Espaço misturado com chocolate quente cremoso numa tarde chuvosa depois do colégio, de esperar o pai chegar do consultório com a escalada do telejornal da Globo, de Brasília na Manchete com Brasília na televisão que ficou colorida. Ser moderno era ouvir a contagem para a TV entrar em rede via satélite.

À medida que eu crescia, Brasília se mostrava cada vez mais inóspita... com seus generais, fardas, tanques, eventuais fechamentos do Congresso e uma distância crescente. Brasília me ensinava a ter saudades de um Rio capital federal, que só conheci de ouvir falar, de ler e através de vestígios visuais e arquitetônicos. Não! Não foi bem assim! Creio que durante muito tempo, o Rio ainda se via capital... e até se comportava como tal, com orgulho de si e uma adorável arrogância.

Tenho uma vaga lembrança de meu pai ter cogitado ir trabalhar em Brasília. Se cogitou, foi coisa passageira, sem maiores consequências além do meu medo de ter que sair da minha cidade para ir morar tão longe, tão distante de mim mesma. Eu não queria ser Brasília. Ainda bem que meu pai sempre adorou esquinas! Nasceu há várias décadas no bairro imperial de São Cristóvão - a república ainda era jovem, mas já não era a Velha. Meu pai é uma criatura da trama urbana, apesar de seu "passado colonial rural" herdado da minha avó - mas isto também não é Brasília.

Quando da posse do general Figueiredo, o último presidente militar, no pátio do colégio, nos projetamos em uma Brasília imaginária, cheia de ruas e esquinas, e protestamos contra mais aquele general eleito por um remoto colégio eleitoral. Em algum álbum, guardo fotos de nossa catarse juvenil, rebelde, engajada.

Universitária, militante estudantil, conheci companheiros e companheiras brasilienses e apreciei algum - não muito - rock do planalto central. Os jovens de Brasília se sentiam especialmente oprimidos. Muitas moças reclamavam da "vigilância sexual": todos conheciam todos; todos queriam saber de tudo; logo, tudo deveria ser muito bem escondido. Achei aquilo uma aberração! Muitos dos jovens militantes estudantis faziam greve de fome contra aumento das mensalidades nas privadas, pelo ensino público e gratuito e contra a moribunda ditadura, mas não suportavam desafiar os costumes abertamente! Eu, heim! Credo! Voluntariosa extremada, concluí que Brasília fazia mal à saúde - e não só à dos candangos!

Uns vinte anos depois, sentada na mureta de um canteirinho bem vagabundo no pátio de um prédio público deveras decaído, metida entre um grupo de doutores de tantas partes do país em busca de uma rara hipotética oportunidade de emprego minimamente decente em tempos bicudos, me peguei falando de Brasília com alguns que moravam por lá e outros que não moravam. Não recordo que alguém tenha dito que nascera por lá. Um antigo morador defendeu timidamente a "cidade" dando conta de que a população reinventava o público naquele espaço de passagem:

- Dentro das quadras, o pessoal refaz a rua!

Não consegui me animar com a ponderação do doutor otimista. Olharam-lhe de soslaio, com um sorrisinho irônico escapando entre os lábios.

Alguém quase gargalhou ao lembrar-se de ter testemunhado, em uma rápida estada em Brasília, uma batucada de bar que apinhara mais de cinquenta músicos de fim de semana - uma quase orquestra de renitentes desesperados! Para quem mora em uma cidade como o Rio, que, apesar dos pesares reais e televisivos, favorece os encontros, a imagem da orquestra de botequim num solitário buraquinho de uma superquadra é tragicômica! Falta a rede, a trama urbana!

Em Brasília, as redes são outras! Verdadeiras teias de aranhas vorazes e venenosíssimas formando um sistema de intrincado bordado... Mas não sei se, hoje, Brasília é mais corrupta do que já foi algum dia, outros tantos dias. Desde que saiu do papel, ela fez a alegria dos empreiteiros, aos quais, segundo as más línguas, por outras vias, ainda serve com gosto - lembremos da CPI do Orçamento e de seus célebres anões!!! Gente! Onde andam os anões?!?!?!

Cá no Rio, o eclético Palácio do Catete resiste transformado em Museu da República. Já nem sei dizer se Vargas se matou por tão pouco ou se por muito. Afinal, seu gesto adiou o golpe por dez anos! Sem dúvida, os padrões mudaram!

A geografia do Rio Distrito Federal está desenhada no coração da cidade. Cada edifício republicano ou seu vestígio é um nó da urbe que é porta, é porto, e ainda é vitrine de um outro Brasil, carente de projetos e farto de expectativas frustradas. O Rio busca reconstruir a identidade perdida. Às vezes, se perde num limbo de memórias e mitos distorcidos. O que fazer?

Sentada entre os colegas doutores transbordantes de incertezas e desencantos, me deixei divagar alinhavando um sonho com retalhos de passados, desejos e imagens de TV: Brasília já não era mais a capital da República, mas, uma apoteótica Vegas sul-americana formatada em parque temático do modernismo brasileiro. Para lá, acorriam multidões de turistas de todos os cantos do planeta - e quiçá de outros planetas -, ávidos por jogar o destino nos dados, na roleta, nas cartas ou mesmo em modestos caça-niqueis - alguém joga o destino em caça-niqueis? Hordas de exuberantes dançarinas bioplastificadas enchendo os olhos e demais órgãos intumescentes, devidamente aditivados por viagras e cialis, de lobos cinzentos prolíferos em metal sonante. Bofes bombados serpenteando seus atributos hipnoticamente diante de portentosas harpias, determinados carcarás e demais aves rapineiras. Nesta Brasília reciclada, vocações não mais se perderiam em arrastados processos por corrupção passiva, ativa, reativa ou hiperativa. Refinados talentos perseguiriam contumazes a fortuna desmedida e volátil. A grande roda acelerada no paraíso da intemperança, devorando e vomitando ao acaso. Uma zona quase franca, limítrofe, onde quase tudo é possível mediante um módico tributo. Uma quase república completamente sadiana gozando numa intensa voragem deletéria. Venham, senhoras e senhores, façam suas apostas! Uma Brasília mais verdadeira e plena, nobre em certo sentido, completamente não-burguesa - desprovida de hipocrisia.

Como a outra, nossa Vegas geraria vários subprodutos na indústria cultural: filmes, seriados policiais, romances devastadores... Teríamos um CSI Brasília, um Cassino... (Quem faria o Bugsy Mallone tupiniquim?)

Durante o dia, quem quisesse fazer um tour a pé pela árida esplanada seria mimoseado por sprinklers aspergindo água fresca perfumada. À noite, quem quisesse poderia assistir ou participar de rachas fatais, incrementados por espetaculares perseguições policiais aos sobreviventes. Os hospitais se especializariam em traumas e cirurgias plásticas radicais tipo Extreme Make Over - um pouco de Hollywood para incrementar! E ainda nos renderia uma versão antropofágica do Nip & Tuck!

Alguém me olhou com espanto. Outro estimou os meios para viabilizar a fantasia transfigurada em projeto. Outros logo quiseram saber onde ficaria o distrito federal. Sugeri o Rio. Um baiano pensou na velha Vila Rica. Um pernambucano, em Salvador. Um paranaense sugeriu São Paulo. Vários reclamaram. Um mineiro concordou comigo. Enquanto sorríamos de nós mesmos, algum burocrata chegou com seu pragmatismo rasteiro, nos despegou de nossa fútil brain storm e nos arremessou sem dó nem piedade na vala comum das tradicionais práticas viciosas que articulam as diversas instâncias da vida social nacional - das micro, às macro -, de tal modo arraigadas, que tantos juram tratar-se de uma segunda natureza. Ah! A burocracia... as instituições... a coisa que deveria ser pública... Ah! Brasília é tão somente o espetacular bode expiatório de uma cultura política patrimonialista, clientelista e personalista que a sociedade brasileira - em todos os seus estratos - não se cansa de atualizar!

Creio que ninguém acredita que o Rio é, por natureza, a salvação da política brasileira. Basta olhar nossos magníficos estadistas sufragados nas nossas modelares urnas eletrônicas pela maioria de nós. Mas convenhamos: despachar no Catete é virtualmente muito diferente de despachar no Palácio do Planalto. Aqui, os palácios estão amarrados à cidade. Basta experimentar um dos frequentes protestos diante do Guanabara. Ou caminhar da Câmara à Assembleia... dela ao Catete, dele ao Laranjeiras... dele ao Guanabara... dele ao Palácio da Cidade... Em nenhum momento estaremos fora da urbe, mas, sempre, atados a seus nós, urdindo e reurdindo a vasta rede que nos enlaça... mexendo em pesos, contrapesos, alterando a paisagem da qual participamos.

...

Brasília ainda me parece um sonho abduzido.

Nenhum comentário: