sábado, 17 de abril de 2010

50 anos de Brasília - lado B

COMPANHEIROS
(posterior a algumas visitas à capital federal)

Passava de duas da madrugada e o convidado principal não chegava. Há muito, eu perdera a esperança de encontrar uma bóia salva-vidas. Ficara lá por inércia, vagando entre um segredo de Estado e outro – segredos de Polichinelo. Ondas de idiotice entremeadas com marolas de bom-mocismo e maremotos de esperteza tornavam meu mau-humor cada vez mais pesado. Lutando contra a gravidade, na tentativa de escapar do sofá branco antes do iminente afogamento no denso fumo dos incansáveis cubanos do próspero lobista ex-guerrilheiro, percebi que não era a única criatura incomodada com a carregada atmosfera local. Tentei refletir acerca do metralhar de adjetivos depreciativos disparados por meus pensamentos. Temia minha arrogância isolacionista, enquanto observava o tom verdolengo pálido quase cinza da tez emurchecida daquele inusitado companheiro de infortúnio. Impassível, sua silhueta longilínea sugeria uma introspecção estranha àquela espetacular mixórdia. Contudo, o ar o envenenava. Postado ao seu lado durante toda a efeméride, o largo lobista descarregara quilos das preciosas cinzas de seus cortos aos pés do pobre magrelo. Visei o grosseirão e lancei um olhar de nojo que suspeito não ter vencido a cortina de fumaça que protegia o imponente prócer. Não bastasse isso, algumas prestimosas modelos, aproveitando-se da discrição do esverdeado, encharcaram-lhe com as calorias etílicas dos drinks que não ousavam recusar com medo de desagradar seus clientes.
- Obrigada, paizinho! – sussurrou uma.
Borboleteou os olhinhos, fez uma voltinha estudada. E a beldade turbinada despejou a bomba no magricela.
O coitado, incapaz de dizer não, estava visivelmente mareado.
Revoltei-me.
Num arroubo de heroísmo, dirigi-me a ele sem qualquer cerimônia, sem preconceito, sem pensar nas consequências. Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio.
Embora a súbita manifestação de minha maldita vocação messiânica me incomodasse, sentia que era o certo a ser feito. Tratava-se de salvá-lo, ou melhor, de salvar a mim mesmo através dele.
No avião, por algum milagre, quase vazio, a comissária permitiu que ele viajasse ao meu lado. Permanecemos mudos. Prescindimos de palavras. Senti uma paz inédita, como se o tempo houvesse parado. Senti-me fruindo plenamente sua presença. No frio da classe executiva, por um instante, nossos corpos se tocaram. Cutucado, um arrepio percorreu meus nervos. Fui tomado pela certeza inelutável de que, a partir dali, nada seria como antes.
Uma semana depois, sua recuperação era evidente. Toda aquela luz derramada sobre nós, a secura do ar azul absoluto, o vento farto que adornava o silêncio daquela árida paragem, tudo isso e o gozo que transbordava meu olhar lhe infundiram um vigor irrefreável. Antes do fim da segunda semana, uma imensa flor branca desabrochava no alto de um de seus viçosos braços verdes espinhudos.
Com orgulho, me deleitava à visão daquele fabuloso cacto cujo nome e sobrenome ainda hoje desconheço.

50 anos de Brasília

DIGRESSÕES MÍTICO-AFETIVAS SOBRE UMA CIDADE MONUMENTO(um texto anterior às visitas que fiz à capital federal)

Meu conhecimento de Brasília não é in loco. O único chão que pisei em Brasília foi o do aeroporto. Um chão de passagem. Eu tinha pressa e cansaço. Todos tinham pressa e cansaço - era uma noite de quinta-feira. E as quintas-feiras de Brasília são um mito - o dia da fuga. Eu esperava a conexão. Tantos ansiavam sôfregos por partir, por retornar a algum outro lugar. Olhos ávidos na tabela de voos. Celulares e pastas nervosas. Rostos conhecidos, rostos típicos, rostos de passagem. Eu perscrutava. Filas tensas, esbarrões, encontrões, empurrões. Quase todos se descuidaram da civilidade. Ela evadira-se-lhes das memórias.

Vencida a irritação geral, adentrei o avião. Pequeno, magro, quase raquítico. Sentei no meu lugar e esperei. E esperei. E continuei esperando até que um bem humorado comandante resolveu se apresentar e nos comunicar que teríamos que esperar mais ainda, pois, se o problema era pequeno, não podia ser ignorado sob pena de pane no ar. Ah, bom! Resignamo-nos todos, ainda que uma mulher revoltada tenha saído em protesto para, dali à uma hora, voltar cabisbaixa com a falta de alternativa. Enquanto esperava, dei para observar minuciosamente as mãos de uns tantos passageiros e tecer conjecturas sobre suas vidas, seus gostos, suas ideias. Dois pares concentraram minha atenção: as mãos enormes, brancas, visivelmente macias, de dedos muito grossos e brutos de um homem com cara de lobista ou de algum outro bicho profissional de bastidores; as mãozinhas pequenas, bronzeadas, nodosas, com um jeito de garras de ave de rapina, enfeitadas com unhas de um esquisito colorido e quilos de ouro e pedras de uma senhora sulista que fugia para o calor da região norte. Enquanto esperava mais ainda, eu revia mentalmente a imagem iluminada da cidade espraiada sobrevoada no pouso. Era estranha, quase triste. Uma coisa rasa, enorme, alastrada, esparsa. Parecia um gigantesco mapa, um campo de pouso intergaláctico. Fazia me sentir solitária, pequena, destemida. Súbito, o avião pôs-se a correr sem muita vontade e foi se erguendo tímido, débil, lasso. Pela primeira vez na vida, senti medo em uma decolagem. Parecia que o aparelho não conseguiria subir o suficiente e que nos esborracharíamos no meio daquela planura toda. Mas o temível Fokker subiu e sustentou-se lá em cima. Quase passado o susto, ainda pude olhar mais uma vez aquele desenho de luzes tão irreal.

Quando eu era criança, as linhas de Brasília me encantavam. Sua grandiosidade me maravilhava. Brasília era um dos signos magnos do meu Brasil moderno. E parecia de brinquedo, uma maquete gigantesca, um alvo monumento futurista pousado na terra vermelha. Lúcio Costa, Niemeyer, e Juscelino eram palavras mágicas.

Aos cinco... seis... sete anos, eu adorava ser moderna. Era uma mistura de astronauta com balão de gás colorido subindo ao infinito azul, de fábrica de sorvete Kibon com gráfica de editora infantil cheirando a papel novo, de Aero Willis com linha de produção da Coca-Cola, de reportagem ilustrada sobre a CSN com reclame de eletrodomésticos GE, de sabonete Eucalol com decalque de ursinho no azulejo do banheiro, de supermercado de gôndolas abarrotadas com personagens Disney patinando no Holiday On Ice, de iogurte Vigor em caixinha com camiseta Hering estampadinha, de cheiro de Mandiopan estufando na frigideira com a chamada para o Túnel do Tempo, de conversível vermelho do amigo solteirão do pai com a atraente parafernália da seção bancária, de estampa Pucci em cores cítricas no vestido démodé que a mãe aposentou com sundae gigante depois da natação no comprido balcão da lanchonete estilo anos 50, de parentada no sábado na churrascaria lotada com estrogonofe no almoço de domingo no clube, de Perdidos no Espaço misturado com chocolate quente cremoso numa tarde chuvosa depois do colégio, de esperar o pai chegar do consultório com a escalada do telejornal da Globo, de Brasília na Manchete com Brasília na televisão que ficou colorida. Ser moderno era ouvir a contagem para a TV entrar em rede via satélite.

À medida que eu crescia, Brasília se mostrava cada vez mais inóspita... com seus generais, fardas, tanques, eventuais fechamentos do Congresso e uma distância crescente. Brasília me ensinava a ter saudades de um Rio capital federal, que só conheci de ouvir falar, de ler e através de vestígios visuais e arquitetônicos. Não! Não foi bem assim! Creio que durante muito tempo, o Rio ainda se via capital... e até se comportava como tal, com orgulho de si e uma adorável arrogância.

Tenho uma vaga lembrança de meu pai ter cogitado ir trabalhar em Brasília. Se cogitou, foi coisa passageira, sem maiores consequências além do meu medo de ter que sair da minha cidade para ir morar tão longe, tão distante de mim mesma. Eu não queria ser Brasília. Ainda bem que meu pai sempre adorou esquinas! Nasceu há várias décadas no bairro imperial de São Cristóvão - a república ainda era jovem, mas já não era a Velha. Meu pai é uma criatura da trama urbana, apesar de seu "passado colonial rural" herdado da minha avó - mas isto também não é Brasília.

Quando da posse do general Figueiredo, o último presidente militar, no pátio do colégio, nos projetamos em uma Brasília imaginária, cheia de ruas e esquinas, e protestamos contra mais aquele general eleito por um remoto colégio eleitoral. Em algum álbum, guardo fotos de nossa catarse juvenil, rebelde, engajada.

Universitária, militante estudantil, conheci companheiros e companheiras brasilienses e apreciei algum - não muito - rock do planalto central. Os jovens de Brasília se sentiam especialmente oprimidos. Muitas moças reclamavam da "vigilância sexual": todos conheciam todos; todos queriam saber de tudo; logo, tudo deveria ser muito bem escondido. Achei aquilo uma aberração! Muitos dos jovens militantes estudantis faziam greve de fome contra aumento das mensalidades nas privadas, pelo ensino público e gratuito e contra a moribunda ditadura, mas não suportavam desafiar os costumes abertamente! Eu, heim! Credo! Voluntariosa extremada, concluí que Brasília fazia mal à saúde - e não só à dos candangos!

Uns vinte anos depois, sentada na mureta de um canteirinho bem vagabundo no pátio de um prédio público deveras decaído, metida entre um grupo de doutores de tantas partes do país em busca de uma rara hipotética oportunidade de emprego minimamente decente em tempos bicudos, me peguei falando de Brasília com alguns que moravam por lá e outros que não moravam. Não recordo que alguém tenha dito que nascera por lá. Um antigo morador defendeu timidamente a "cidade" dando conta de que a população reinventava o público naquele espaço de passagem:

- Dentro das quadras, o pessoal refaz a rua!

Não consegui me animar com a ponderação do doutor otimista. Olharam-lhe de soslaio, com um sorrisinho irônico escapando entre os lábios.

Alguém quase gargalhou ao lembrar-se de ter testemunhado, em uma rápida estada em Brasília, uma batucada de bar que apinhara mais de cinquenta músicos de fim de semana - uma quase orquestra de renitentes desesperados! Para quem mora em uma cidade como o Rio, que, apesar dos pesares reais e televisivos, favorece os encontros, a imagem da orquestra de botequim num solitário buraquinho de uma superquadra é tragicômica! Falta a rede, a trama urbana!

Em Brasília, as redes são outras! Verdadeiras teias de aranhas vorazes e venenosíssimas formando um sistema de intrincado bordado... Mas não sei se, hoje, Brasília é mais corrupta do que já foi algum dia, outros tantos dias. Desde que saiu do papel, ela fez a alegria dos empreiteiros, aos quais, segundo as más línguas, por outras vias, ainda serve com gosto - lembremos da CPI do Orçamento e de seus célebres anões!!! Gente! Onde andam os anões?!?!?!

Cá no Rio, o eclético Palácio do Catete resiste transformado em Museu da República. Já nem sei dizer se Vargas se matou por tão pouco ou se por muito. Afinal, seu gesto adiou o golpe por dez anos! Sem dúvida, os padrões mudaram!

A geografia do Rio Distrito Federal está desenhada no coração da cidade. Cada edifício republicano ou seu vestígio é um nó da urbe que é porta, é porto, e ainda é vitrine de um outro Brasil, carente de projetos e farto de expectativas frustradas. O Rio busca reconstruir a identidade perdida. Às vezes, se perde num limbo de memórias e mitos distorcidos. O que fazer?

Sentada entre os colegas doutores transbordantes de incertezas e desencantos, me deixei divagar alinhavando um sonho com retalhos de passados, desejos e imagens de TV: Brasília já não era mais a capital da República, mas, uma apoteótica Vegas sul-americana formatada em parque temático do modernismo brasileiro. Para lá, acorriam multidões de turistas de todos os cantos do planeta - e quiçá de outros planetas -, ávidos por jogar o destino nos dados, na roleta, nas cartas ou mesmo em modestos caça-niqueis - alguém joga o destino em caça-niqueis? Hordas de exuberantes dançarinas bioplastificadas enchendo os olhos e demais órgãos intumescentes, devidamente aditivados por viagras e cialis, de lobos cinzentos prolíferos em metal sonante. Bofes bombados serpenteando seus atributos hipnoticamente diante de portentosas harpias, determinados carcarás e demais aves rapineiras. Nesta Brasília reciclada, vocações não mais se perderiam em arrastados processos por corrupção passiva, ativa, reativa ou hiperativa. Refinados talentos perseguiriam contumazes a fortuna desmedida e volátil. A grande roda acelerada no paraíso da intemperança, devorando e vomitando ao acaso. Uma zona quase franca, limítrofe, onde quase tudo é possível mediante um módico tributo. Uma quase república completamente sadiana gozando numa intensa voragem deletéria. Venham, senhoras e senhores, façam suas apostas! Uma Brasília mais verdadeira e plena, nobre em certo sentido, completamente não-burguesa - desprovida de hipocrisia.

Como a outra, nossa Vegas geraria vários subprodutos na indústria cultural: filmes, seriados policiais, romances devastadores... Teríamos um CSI Brasília, um Cassino... (Quem faria o Bugsy Mallone tupiniquim?)

Durante o dia, quem quisesse fazer um tour a pé pela árida esplanada seria mimoseado por sprinklers aspergindo água fresca perfumada. À noite, quem quisesse poderia assistir ou participar de rachas fatais, incrementados por espetaculares perseguições policiais aos sobreviventes. Os hospitais se especializariam em traumas e cirurgias plásticas radicais tipo Extreme Make Over - um pouco de Hollywood para incrementar! E ainda nos renderia uma versão antropofágica do Nip & Tuck!

Alguém me olhou com espanto. Outro estimou os meios para viabilizar a fantasia transfigurada em projeto. Outros logo quiseram saber onde ficaria o distrito federal. Sugeri o Rio. Um baiano pensou na velha Vila Rica. Um pernambucano, em Salvador. Um paranaense sugeriu São Paulo. Vários reclamaram. Um mineiro concordou comigo. Enquanto sorríamos de nós mesmos, algum burocrata chegou com seu pragmatismo rasteiro, nos despegou de nossa fútil brain storm e nos arremessou sem dó nem piedade na vala comum das tradicionais práticas viciosas que articulam as diversas instâncias da vida social nacional - das micro, às macro -, de tal modo arraigadas, que tantos juram tratar-se de uma segunda natureza. Ah! A burocracia... as instituições... a coisa que deveria ser pública... Ah! Brasília é tão somente o espetacular bode expiatório de uma cultura política patrimonialista, clientelista e personalista que a sociedade brasileira - em todos os seus estratos - não se cansa de atualizar!

Creio que ninguém acredita que o Rio é, por natureza, a salvação da política brasileira. Basta olhar nossos magníficos estadistas sufragados nas nossas modelares urnas eletrônicas pela maioria de nós. Mas convenhamos: despachar no Catete é virtualmente muito diferente de despachar no Palácio do Planalto. Aqui, os palácios estão amarrados à cidade. Basta experimentar um dos frequentes protestos diante do Guanabara. Ou caminhar da Câmara à Assembleia... dela ao Catete, dele ao Laranjeiras... dele ao Guanabara... dele ao Palácio da Cidade... Em nenhum momento estaremos fora da urbe, mas, sempre, atados a seus nós, urdindo e reurdindo a vasta rede que nos enlaça... mexendo em pesos, contrapesos, alterando a paisagem da qual participamos.

...

Brasília ainda me parece um sonho abduzido.

domingo, 4 de abril de 2010

deserto

Olhava para o écran e sentia-se um lixo. No momento, caminhava por um longo deserto cerebral. Não sabia dizer se era falta ou excesso. Às vezes, se equivalem. Sentia falta de sonhos. Sentia falta de alguma falta de bom senso. Pelo menos voltara a ter pesadelos dos quais se recordava. O último era o sumiço da filha da vizinha. A vizinha estava muito fotogênica no sonho. Indagava-se o motivo de sua antipatia pela vizinha – a da realidade, não a do sonho. Não que a vizinha real fosse uma pessoa simpática e agradável. Não era. Era visivelmente arrivista, pretensiosa e sua falta de recursos “do espírito” era patente. E isso era uma coisa que valorizava: “espírito”. Ainda assim continuava a intrigar-se com a implicância que nutria contra a mulher. Apesar de mal conhecê-la, não lhe era difícil fazer um extenso rol dos defeitos da outra, mas sabia muito bem que tantos atributos negativos não justificavam o que sentia. Ninguém tem tanta aversão pelos outros em função de suas faltas – das faltas dos outros. Do mesmo modo que ninguém é fortemente atraído meramente pelas virtudes alheias. Eram máximas “de botequim” as quais apreciava. Pérolas de bom senso extraídas do senso comum etílico dos botecos de juventude. Ou não. Talvez tenha aprendido isso ao longo da vida. O que naquela mulher lhe era tão atraentemente repulsivo? É óbvio que considerava a possibilidade de que identificava na fulana alguma característica de si mesma a qual abominava. Exorcizava o mal que via sem si abominando a outra. Mas o que exatamente na outra – e nela mesma - era o mal, o feio? A “falta de espírito”? A arrogância? O ridículo de fraquezas mal disfarçadas? No sonho, ela era expectadora do sofrimento da outra – da outra que, certamente não era a outra da realidade. Chegou a desconfiar que, no sonho, a outra estava no lugar dela mesma, da que sonhava. Pode ser – pensou. Mas por que a outra sofria tão cool? E por que o sofrimento da outra lhe era tão distante? Súbito, parecia de volta àquele território árido contemplando a dificuldade olhos nos olhos. Ela estava lá, tão longe e tão perto. Tão absoluta como o céu suburbano mítico de sua infância recontada. Capaz de roubar seu balão. Capaz de lhe fazer sentir a sua pequenez. Capaz de lhe fazer astronauta e mesmo parte de tudo. Agora, faltava alguma coisa. A ela e a mulher do sonho.

sábado, 3 de abril de 2010

Coisas de mulher...

Coloquei o mais velho para dormir. Desliguei a luz do quarto azul. Dei uma beijoca no meu lindão e um boa noite cheio de mel. Apertei o botão do CD-player e fechei a porta atrás de mim. Entrei no quarto amarelinho, onde as pequenas gêmeas dividiam o berço animadamente. Aliás, as duas estavam animadas demais para a hora. Já deveriam estar dormindo há muito tempo. Liguei o CD-player antes de tirá-las no berço. A música não era a mesma de que Caio gosta. Ele prefere Bach. Elas só dormem com Vivaldi. Eu e Armando crescemos com o rádio, embora as estações fossem diferentes. Flor se balançava agarrada à grade, enquanto Cristal, com os dentinhos recém-ganhos, tentava arrancar o rabo do urso de pelúcia. Acendi o abajur de estrelinhas, apaguei a luz principal, peguei as meninas e me sentei na poltrona florida com ambas no colo. Meio atrapalhada, suspendi a ampla camiseta e pluguei cada qual em uma das fartas tetas que já nem parecem minhas. E nem sei se realmente o são. Rapidamente, as gatinhas dormiram com o enjoativo leitinho escorrendo para fora das boquinhas rosadas. Respirei fundo, me concentrei e me levantei de uma só vez. Ou quase. Dei umas duas voltas pelo quarto. Foi o suficiente para um arroto escandaloso de Flor e dois arrotinhos fedidos de Cristal. Com jeito, coloquei cada qual no seu respectivo lado do berço. Primeiro, Flor; depois, Cristal. Limpei suas boquinhas, olhei-as enchendo o berço e pensei que teremos que comprar duas caminhas em breve. Saí do quarto em silêncio, fechei a porta e corri para a cozinha. Enchi com água fresca um imenso copo. Bebi tudo sem sequer respirar. Repeti a operação mais duas vezes. Então, fui para nosso quarto.
A luz estava acesa. Armando estava recostado numa montanha de almofadas, entretido com um livro de Bataille lido e relido tantas e tantas vezes. Joguei-me na cama. Caí de bruços, perpendicular ao corpo moreno de Armando, com minha cara na altura do umbigo dele. Olhei para o belo e profundo umbigo, cercado de lisos pêlos negros. Respirei fundo, olhei para a cara de Armando e perguntei: "Você não vai mesmo?" Repetindo o gesto conhecido de longa data, ele me olhou nos olhos e, com um ar blasé, depositou o Bataille sobre o atulhadíssimo criado-mudo, tirou os óculos, largou-os sobre o livro desmantelado enquanto, com a outra mão, apertava seu terceiro olho, lá onde o nariz encontra a testa. Após reacomodar-se nas almofadas, respondeu: "Não, Mariinha. Quem vai ficar com as crianças?" Renitente, argumentei meio sem propósito, quase me desculpando: "Eu poderia ter chamado a Lucinha ou mesmo a mamãe. Era só você ter dito que topava ir comigo..." Franzindo o nariz, Armando contra-argumentou: "Eu nem conheço o cara! Além do mais, o convite chegou só no seu nome!" E eu: "E alguém precisa conhecer o artista para ir ao vernissage? E não me venha com conversa fiada! Ele ligou aqui pra casa e convidou nós dois. Não foi só..." Sarcástico, Armando rebateu: "Os dois? Não é ele que acabou de ficar viúvo? Só me convidou pra não pegar mal, caso não lhe agradasse a idéia..." Respondi gritando: "Que idéia? Tá maluco? Você e seu ciúme doentio! Não entendo isso! Você é convidado, eu insisto pra você ir, você teima em não ir e ainda fica me acusando. Vai fazer análise! Vai..." Armando se esparramou na cama enquanto pedia silêncio: "SHIIII! Mariinha! Daqui a pouco, você acorda as meninas! SHIIII!! Desse jeito, você acorda até o dorminhoco do Caio!" Calei-me imediatamente. Uma preguiça oceânica me esmagava contra o colchão cheirando a alfazema. Acomodei-me no meu lado da cama, estiquei o braço e desliguei o interruptor. No escuro quase absoluto, um longo silêncio se impôs.
Dois, três ou quatro minutos se passaram...
No breu, vez por outra, gemidos impacientes entrecortavam o som ritmado de nossas respirações. E aquele som borbulhante me dava ganas de rir, mas só consegui ofegar mais e mais. O suor era tanto que escorregávamos um no outro. Um cheiro acre-doce encharcou o ar. Estrelinhas piscavam na noite do meus olhos.
Uma dormência gostosa, um apagão da minha tão sempre alerta consciência. Amém!
De repente, pulei da cama e tomei um banho gelado. Estava pronta para sair.
Decidi ir à festa, ao vernissage.
Foi uma experiência interessante, embora não tenha sido o que esperava. Nunca é. Mas aí é que reside a graça! Quase não fui, pois Armando não tava a fim de ir e não foi mesmo. E me deu aquela preguiça monstra. Mas achei tão ridículo não ir. O tal do café fica tão pertinho, a menos de dez minutos a pé. Fiz uma produção meio esquisita: saia longa de jeans desbotado com duas fendas, um cinto de couro preto grossão com um fivelão prateado enorme, uma blusinha de malha prateada, jaqueta velhíssima de black-jeans, meia-calça preta e tênias all-star. Esquisito, né? Muito. Eu sei. O Armando disse que estava legal, mas acho que ele já estava dormindo mesmo. Ele sempre diz que estou legal. Acho que se amarrar um lençol como uma túnica romana e calçar umas havaianas ele dirá que estou ótima. Resolvi ir sem bolsa na esperança de não criar expectativas nos virtuais assaltantes locais. Coloquei o celular num bolso, a carteira noutro, uma caneta num terceiro. E lá fui eu. Quase onze da noite. Rua cheia. Passo ao lado de uma pizzaria e quem vejo? Um membro da minha banca de doutorado comendo pizza com uma senhora e dois jovens! Logo ele! Um cara finérrimo. Um metido simpático. Um tipo que você jamais imagina numa noite de sábado enfiado numa mega-pizzaria. Já foi até diplomata. Fiquei tentada a entrar na pizzaria pra dar um alô, mas me contive. Cheguei à porta do tal café e fui recebida por um rapaz forte e alto vestido com um belo terno preto. Dei meu nome. Daí, ele se vira para mim e pergunta cheio de autoridade:
"Cadê o seu marido? Ele está aqui na minha lista!"
Vê se pode!
Precisava ver a minha cara!
O pessoal lá dentro achou até que eu tivesse sido assaltada!
Rendeu uma bronca extra no Armando!
Mas o vernissage foi bom. O vinho estava ótimo. A galera estava a mil. As obras...

(homenagem à Malu, que nasceu hoje, aqui no Rio)

Fantasia sobre Cecília

Cecília, moça recatada, guardou seus amores.
Não creio que ela tenha guardado todos. Certamente, não guardou todo o seu amor. Até porque talvez seja verdade o que alguém já disse: que amar é verbo intransitivo.
No tempo de Cecília e do poeta do verbo intransitivo, grandes poetas andavam pelas ruas, iam à padaria comprar pão e leite. Pelo menos, gosto de imaginar assim. Era um tempo de grandes poetas. Quando eu nasci, grandes poetas, cronistas e escritores andavam pelas ruas, escreviam para o suplemento literário e assinavam manifestos. Eventualmente, um ou outro ia preso ou prestava depoimento.
Imagine Cecília, fina e elegante, prestando depoimento sobre seu amor por Filipe dos Santos.
Tolice da menina que já não sou imaginar essas bobagens.
O que não me sai da cabeça é a grandeza.
Não se deixe levar pela maledicência! Não se iluda! Lembrar da grandeza de poetas, escritores, intelectuais nada tem a ver com megalomania ou nostalgia idiota. Tem mais a ver com curiosidade sobre o que nos faz “deste tempo”, deste de agora.
Aliás, uma boa questão é a do tempo a que pertencemos. Eu pertenço a um tempo? Alguém pertence a um tempo? Quando eu tiro o volume verde da obra poética de Cecília da prateleira no meio da estante branca e leio:

“Pois parecia loucura,
Mas era mesmo verdade.
Quem pode ser verdadeiro,
Sem que desagrade?

Por aqui passava um homem...
- e como o povo se ria! –
No entanto, à sua passagem,
Tudo era como alegria.

Mas ninguém mais se está rindo
Pois talvez ainda aconteça
Que ele por aqui não volte,
Ou que volte sem cabeça...”

me pergunto – a que tempo pertence Cecília?
Cecília pertence a um tempo?