quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O pão nosso


Em uma manhã no hortomercado, próximo à banca de pães, uma senhora passada dos setenta anos, observando o funcionário que se afastava com uma grande cesta vazia de pães, interpelou um senhor na mesma faixa etária lamentando a ausência de pães frescos. O homem rapidamente a corrigiu mostrando com um gesto largo duas cestas transbordando uma nova fornada. A mulher se aproximou e, ao perceber que estava diante de baguetes e pães franceses integrais, prorrompeu em impropérios dirigidos ao alimento:

- Essa gororoba eu não como! Isso é uma porcaria! Integral! Boa droga!

Indignado, o homem acorreu em defesa dos grãos integrais retrucando veemente:

- Minha senhora, estes é que são bons! Têm mais fibras - contribuem para uma melhor digestão. O outro só engorda! A senhora não sabe?

E olhou para o abdome dela procurando a comprovação de sua sentença. Decepcionado com o resultado da investigação, ofegou.

Animada, ela não se deteve:

- Isso tudo é bobagem! Enrolação!

O homem tremeu! Sua cara ficou mais vermelha que os tomatinhos-cerejas que estavam em promoção. Parou bruscamente de colocar pães no saquinho que segurava. Olhou para mim com olhos súplices, como quem buscasse uma bóia em meio ao naufrágio. Sorri e completei meu pacote de baguetes integrais enquanto aguardava o desfecho que não tardou a vir:

- Minha senhora, os médicos, os nutricionistas, os doutores todos afirmam que o integral é melhor. Quem a senhora acha que é para questioná-los?

Saí correndo antes que soltasse uma gargalhada e apanhasse de alguém.

Um mês depois, na fila do caixa, um homem “esportivo” – visivelmente adepto de atividades físicas regulares, vestido com calção, camiseta e tênis de corrida – contando uns trinta anos aguardava com seu carrinho repleto de frutas, legumes, granola e iogurte light. Na frente dele, uma franzina quarentona atulhava seu carrinho com caixas e mais caixas de sucos industrializados. Ele a observava com indignação messiânica:

- Você deveria levar frutas ou suco fresco ao invés dessas caixas! Isso tem muita química! E açúcar também! As fibras e as vitaminas que sobraram são uma ninharia...

A mulher virou-se para ele, olhou-o nos olhos, fez um esgar tão feroz que recuei meu carrinho e, então, rosnou:

- Eu trabalho! Sou muito ocupada! Não tenho quem me faça suquinho!

Para a sorte dele, o caixa a chamou. O infeliz ficou com cara de cão sem dono. Um cachorrão de metro e noventa chutado e batido por uma figurinha de metro e meio. Ui!

Lembrei que quando eu tinha uns quinze anos enchia a paciência de meus pais com relação ao quesito alimentação. Não sei como eles me aguentavam. Acho que desligavam os ouvidos. Eu fazia questão absoluta de acompanhá-los às compras de mês. Eles tentavam escapar sem que eu percebesse. Mas eu era tinhosa. E lá íamos nós! Não havia problema quanto ao caráter da minha alimentação natureba de então. O que eu queria era providenciado. Às vezes, meu pai me lembrava das vitaminas lipossolúveis e da necessária ingestão de gorduras. Duro mesmo era minha pronta declamação de todas as desvantagens, prejuízos, toxinas e desgraças dos itens que eles escolhiam para eles assim que eram colocados no carrinho. Eu parecia um bispo pentecostal expurgando demônios de seu rebanho. Impressionava! O público os encarava com dó!

É muito interessante essa característica tão humana de querer salvar seu próximo a qualquer preço! E o que dizer dessa certeza tão certa, tão cristalizada, tão aparentemente desprovida de dúvida de que o mundo deveria nos tomar como exemplo, como modelo? Se estamos tão certos de nossas certezas e escolhas, por que nos incomodamos tanto com os “erros” alheios? Esquisito, né?

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

No silêncio escuro


No silêncio escuro, senti saudades de casa, da mesa da cozinha vestida com a vistosa toalha em tons de verde e ouro e das portas escancaradas para o vento noturno - frio, morno, quente ou gelado. Mais que a propriedade jurídica, o que define ser o dono da casa é a liberdade, o sentir-se à vontade em não pedir licença para algumas trivialidades, entre tantas: acordar no meio da madrugada, escancarar portas e janelas, acender uma única lâmpada, sentar-se em um canto e pôr-se a escrever até a hora que o sono permitir. Talvez, enquanto a caneta espera sobre o caderno – um luxo de folhas encorpadas com capa dura -, preparar um chá de ervas, beber um cálice de porto ou um copo de vinho tinto sem o embaraço de qualquer tipo de assédio, sem o constrangimento de um pedido de explicação.

Meus olhos teimavam em não se fechar e eu me deleitava em antecipar possíveis consequências da minha falta de sono, da minha inquietude, da minha vontade de escrever não sei bem o quê. Escrever, talvez, alguma verdade, algum segredo, alguma obviedade fulminante. Sofria as delícias da tortura da antecipação, agoniava-me, sentia-me derrotada, maldizia meu algoz imaginário – imaginário? Repetidamente, antecipava e acabava por desistir de abrir a porta do quarto e buscar um lugar onde pudesse ficar só comigo mesma na casa dela. Imaginava a chave estalando na fechadura, a lingueta puxada pela fechadura arranhando o metal encaixado no batente da porta, a porta gritando um lancinante rangido amplificado pelo breu profundo da casta veste noturna da pequena cidade de Minas Gerais. Imaginava meus passos descalços - quase felinos - perscrutados pelos ávidos ouvidos dela. Imaginava outras tantas fechaduras, maçanetas, linguetas, portas, dobradiças, rangidos, luzes e ela trôpega me interpelando qual assombração emergida das trevas. Imaginava seu tom acusatório, a voz modulada com precisão dramática derramando-se em uma perpétua ladainha autocomiserativa, auto-indulgente, autopiedosa. Imaginava meu desgosto ético e estético diante disso tudo. Tanto imaginei e, certamente, me comprazi em imaginar, que o peso do corpo desgastado pelo dia mais o prazer doentio em me auto-espicaçar com essas ninharias venceram a lassidão de um desejo tão embaçado. O prazer e a culpa em imaginá-la tão terrível consumiram minha vontade, sufocando-me em uma angústia irresoluta.

Virei-me para um lado e para outro. Encostei-me no corpo quente dele – sempre tão quente – já entregue ao sono. Meus olhos fechados ouviam o som confuso da conversa dos adolescentes postados na rua, o qual soava como punhaladas. Suas vozes atravessavam o acanhado corredor entre o portão de serviço e o pátio térreo. E subiam em um vôo cego ignorando paredes, escadas, vidraças e cortinas. E corriam pelas superfícies da casa, abraçando-a, até chegarem aos meus ouvidos. E quase atravessavam a minha cabeça. Prenunciando o pouco caso deles em relação aos apelos que eu fizesse a um abstrato senso de civilidade que, irritada, não supus possuírem ou compreenderem, imaginei chamar a polícia, jogar um balde de água fria neles, ridicularizar seu sotaque caipira e o fato de que aquela algaravia mais parecia um cacarejar sôfrego que uma conversa, uma fala, uma manifestação viva da língua portuguesa, de alguma língua, de qualquer língua. Fiquei intrigada com minha dificuldade – quiçá impossibilidade – de discernir uma palavra que fosse, uma expressão, uma pequena frase no meio daquele amálgama sonoro cheio de erres e ganidos e risos nervosos.

Agora que aquela noite tornou-se passado, a lembrança recente do vozerio juvenil se agarra a uma imagem bem mais remota da qual é difícil – e nem desejo – me desvencilhar: as orgias caninas que se desenrolavam pelas ruas da cidade – dessa mesma cidade, tão diversa naquele tempo – diante de meus gulosos olhos infantis. Crianças e adolescentes rindo, se deliciando, correndo atrás dos bizarros comboios caninos, quais cães. Miragens de vetustas senhoras, cultivando um luto sem prazo, batendo janelas, brandindo vassouras de piaçava, lançando baldes e mais baldes de água fria nas matilhas casualmente possuídas pelo perfume de cadelas no cio. Imaginárias avós sem netos, sem filhos, eternas tias, ultrajadas pelo descabelado cortejo de infantes celebrando o desenfreado coito das alimárias. Mais que os cães, nós éramos uma vergonha, a vergonha delas.

E, naquela noite escura, enquanto ele dormia pesado, seu corpo mal reagindo às provocações de minhas carícias preguiçosas, eu ouvia aquele balbuciar gritado, experimentava a sua solidez aparentemente desconexa. O tom da conversa mal variava. A partir de certo momento, entremeava-se com longos silêncios. As raras variações de tonalidade se faziam notar mais nas vozes individuais, todas tão parecidas, todas emboladas naquele falar com jeito estrangeiro, coisa de bebês na creche, de bicho assustado no meio da feira livre. Vontade de ficar junto, de papaguear, de emendar um monte de fios soltos. O grupo mal espalhado em um canto da ruela estreita berrando toda aquela energia juvenil na noite que quase virava madrugada. Nem sei se eles se davam conta disso. E eu ouvindo sem discernir palavra. E eles se entendendo, batucando sua música gutural na minha cabeça. Minha cabeça, a essa altura, quase cinema. Já não conseguia pensar em polícia, nem em balde de água fria, muito menos, em ridicularizá-los.

Bem depois, noutra noite, diante do caderno em que, finalmente, a coragem me fez escrever, me veio Roman Jakobson e sua comunicação fática, impulso para ligação, para ficar junto, demonstração cabal do desejo de ficar junto. Mensagem primária em que a expressão reina sobre o verbo.

Percebo agora que, naquela noite, uma súbita generosidade transpirava em mim à medida que me lembrava de minha própria adolescência nessa mesma - ou quase a mesma - cidade pequena. E muito aquém de minha adolescência. Conversa na rua de manhã, de tarde ou de noite. Um pouco de bagunça, brincadeira. Não pouca irreverência. Mais conversa, ação, palavra em ação – aos borbotões. E o footing noturno em volta do quarteirão inflamado, o muro da viúva, ver e ser visto, a cerquinha do bar da moda, muito papo cabeça e um monte de recém ex-drogados cheios de causos para contar. Às vezes, o bar, a boite enfumaçada, a discoteca. O famigerado tobomóvel e o primeiro beijo no seio, a barba dele arranhando - ele que já deixou viúva e filhos. Minha melhor amiga fingindo que observava a vista quase aérea. E eu decolando. Depois, mais centenas de beijos, os intermináveis bailes carnavalescos, o medo e o desejo disputando cada centímetro quadrado do meu corpo encharcado de hormônios e curiosidade, a volta para casa com a parada na padaria para comprar da primeira fornada do dia e muito leite fresco. Então, dei para lembrar que, em poucos anos, nossas crianças serão adolescentes. Elas e seus amigos. Eu e meus amigos.

Nessa altura, o cacarejar dos meninos corria espaçado por compridos silêncios, risadas constrangidas e sons de tabefes sem convicção. Um joguinho de sedução. Nem me dei ao trabalho de imaginar o que poderiam estar experimentando nos desvãos da vizinhança. Nem importava. Importava tão somente minha estranha certeza de que eles estavam ali dando alguns tímidos passos, primeiros tímidos passos em direção a um mundo sonhado maior. Talvez porque tenha sido assim comigo. Talvez porque seja assim com todos. Será? Nem sei. Um mundo sonhado maior, ampliado, em permanente expansão. Maior que qualquer coisa. Nem sei o quê. Pois nem sei quem são, que bagagem carregam além do sotaque carregado do interior dessa Minas – Minas que é toda interior.

Eram meninos e sua balbúrdia tolinha já quase me embalava. Eram meninos e meninas e sua vontade de estar juntos, de ser outra coisa, de dar um passo para fora do quintal já me enternecia. Eram meninos crescendo e eu consegui me deixar tocar por sua força resoluta, por sua crueza e inocência, por sua imaginada crença em algum mundo maior que o quintal acanhado, que a ruela em curva ascendente, que a cidadezinha interiorana, que seus corpos, que já deixaram de ser corpos de crianças. Então, consegui dormir.

Consegui dormir em paz por tê-los deixado em paz, por não atrapalhar seus primeiros passos, por não intimidá-los. Consegui dormir apesar de viver teimando em recordar a fúria que me rasgava, uma falta maior que o deserto do Saara, uma solidão rascante, uma vontade de bater a porta atrás de mim e ir para não sei onde. No fim das contas, entre um balde d’água fria ali e outro acolá, como os persistentes comboios caninos e seus séquitos de infantes irreverentes, talvez tenha sido isso exatamente o que fiz.


"Há mensagens que servem fundamentalmente para prolongar ou interromper a comunicação, para verificar se o canal funciona ('Alô, está me ouvindo?'), para atrair a atenção do interlocutor ou afirmar sua atenção continuada ('Está ouvindo?' ou, na dicção shakespereana, 'Prestai-me ouvidos!' - e, no outro extremo do fio, 'Hm-hm!'). Este pendor para o CONTATO ou, na designação de Malinowski, para a função FÁTICA, pode ser evidenciada por uma troca profusa de fórmulas ritualizadas, por diálogos inteiros cujo único propósito é prolongar a comunicação."
Jakobson, Linguística e Comunicação

No silêncio escuro

No silêncio escuro, senti saudades de casa, da mesa da cozinha vestida com a vistosa toalha em tons de verde e ouro e das portas escancaradas para o vento noturno - frio, morno, quente ou gelado. Mais que a propriedade jurídica, o que define ser o dono da casa é a liberdade, o sentir-se à vontade em não pedir licença para algumas trivialidades, entre tantas: acordar no meio da madrugada, escancarar portas e janelas, acender uma única lâmpada, sentar-se em um canto e pôr-se a escrever até a hora que o sono permitir. Talvez, enquanto a caneta espera sobre o caderno – um luxo de folhas encorpadas com capa dura -, preparar um chá de ervas, beber um cálice de porto ou um copo de vinho tinto sem o embaraço de qualquer tipo de assédio, sem o constrangimento de um pedido de explicação.

Meus olhos teimavam em não se fechar e eu me deleitava em antecipar possíveis conseqüências da minha falta de sono, da minha inquietude, da minha vontade de escrever não sei bem o quê. Escrever, talvez, alguma verdade, algum segredo, alguma obviedade fulminante. Sofria as delícias da tortura da antecipação, me agoniava, me sentia derrotada, maldizia meu algoz imaginário – imaginário? Repetidamente, antecipava e acabava por desistir de abrir a porta do quarto e buscar um lugar onde pudesse ficar só comigo mesma na casa dela. Imaginava a chave estalando na fechadura, a lingüeta puxada pela fechadura arranhando o metal encaixado no batente da porta, a porta gritando um lancinante rangido amplificado pelo breu profundo da casta veste noturna da pequena cidade de Minas Gerais. Imaginava meus passos descalços - quase felinos – perscrutados pelos ávidos ouvidos dela. Imaginava outras tantas fechaduras, maçanetas, lingüetas, portas, dobradiças, rangidos, luzes e ela trôpega me interpelando qual assombração emergida das trevas. Imaginava seu tom acusatório, a voz modulada com precisão dramática derramando-se em uma perpétua ladainha autocomiserativa, auto-indulgente, autopiedosa. Imaginava meu desgosto ético e estético diante disso tudo. Tanto imaginei e, certamente, me comprazi em imaginar, que o peso do corpo desgastado pelo dia mais o prazer doentio em me auto-espicaçar com essas ninharias venceram a lassidão de um desejo tão embaçado. O prazer e a culpa em imaginá-la tão terrível consumiram minha vontade, me sufocando em uma angústia irresoluta.

Virei-me para um lado e para outro. Encostei-me no corpo quente dele – sempre tão quente – já entregue ao sono. Meus olhos fechados ouviam o som confuso da conversa dos adolescentes postados na rua, o qual soava como punhaladas. Suas vozes atravessavam o acanhado corredor entre o portão de serviço e o pátio térreo. E subiam em um vôo cego ignorando paredes, escadas, vidraças e cortinas. E corriam pelas superfícies da casa, abraçando-a, até chegarem aos meus ouvidos. E quase atravessavam a minha cabeça. Prenunciando o pouco caso deles em relação aos apelos que eu fizesse a um abstrato senso de civilidade que, irritada, não supus possuírem ou compreenderem, imaginei chamar a polícia, jogar um balde de água fria neles, ridicularizar seu sotaque caipira e o fato de que aquela algaravia mais parecia um cacarejar sôfrego que uma conversa, uma fala, uma manifestação viva da língua portuguesa, de alguma língua, de qualquer língua. Fiquei intrigada com minha dificuldade – quiçá impossibilidade – de discernir uma palavra que fosse, uma expressão, uma pequena frase no meio daquele amálgama sonoro cheio de erres e ganidos e risos nervosos.

Agora que aquela noite tornou-se passado, a lembrança recente do vozerio juvenil se agarra a uma imagem bem mais remota da qual é difícil – e nem desejo – me desvencilhar: as orgias caninas que se desenrolavam pelas ruas da cidade – dessa mesma cidade, tão diversa naquele tempo – diante de meus gulosos olhos infantis. Crianças e adolescentes rindo, se deliciando, correndo atrás dos bizarros comboios caninos, quais cães. Miragens de vetustas senhoras, cultivando um luto sem prazo, batendo janelas, brandindo vassouras de piaçava, lançando baldes e mais baldes de água fria nas matilhas casualmente possuídas pelo perfume de cadelas no cio. Imaginárias avós sem netos, sem filhos, eternas tias, ultrajadas pelo descabelado cortejo de infantes celebrando o desenfreado coito das alimárias. Mais que os cães, nós éramos uma vergonha, a vergonha delas.

E, naquela noite escura, enquanto ele dormia pesado, seu corpo mal reagindo às provocações de minhas carícias preguiçosas, eu ouvia aquele balbuciar gritado, experimentava a sua solidez aparentemente desconexa. O tom da conversa mal variava. A partir de certo momento, entremeava-se com longos silêncios. As raras variações de tonalidade se faziam notar mais nas vozes individuais, todas tão parecidas, todas emboladas naquele falar com jeito estrangeiro, coisa de bebês na creche, de bicho assustado no meio da feira livre. Vontade de ficar junto, de papaguear, de emendar um monte de fios soltos. O grupo mal espalhado em um canto da ruela estreita berrando toda aquela energia juvenil na noite que quase virava madrugada. Nem sei se eles se davam conta disso. E eu ouvindo sem discernir palavra. E eles se entendendo, batucando sua música gutural na minha cabeça. Minha cabeça, a essa altura, quase cinema. Já não conseguia pensar em polícia, nem em balde de água fria, muito menos, em ridicularizá-los.

Bem depois, noutra noite, diante do caderno em que, finalmente, a coragem me fez escrever, me veio Roman Jakobson e sua comunicação fática, impulso para ligação, para ficar junto, demonstração cabal do desejo de ficar junto. Mensagem primária em que a expressão reina sobre o verbo.

Percebo agora que, naquela noite, uma súbita generosidade transpirava em mim à medida que me lembrava de minha própria adolescência nessa mesma – ou quase a mesma - cidade pequena. E muito aquém de minha adolescência. Conversa na rua de manhã, de tarde ou de noite. Um pouco de bagunça, brincadeira. Não pouca irreverência. Mais conversa, ação, palavra em ação – aos borbotões. E o footing noturno em volta do quarteirão inflamado, o muro da viúva, ver e ser visto, a cerquinha do bar da moda, muito papo cabeça e um monte de recém ex-drogados cheios de causos para contar. Às vezes, o bar, a boite enfumaçada, a discoteca. O famigerado tobomóvel e o primeiro beijo no seio, a barba dele arranhando - ele que já deixou viúva e filhos. Minha melhor amiga fingindo que observava a vista quase aérea. E eu decolando. Depois, mais centenas de beijos, os intermináveis bailes carnavalescos, o medo e o desejo disputando cada centímetro quadrado do meu corpo encharcado de hormônios e curiosidade, a volta para casa com a parada na padaria para comprar da primeira fornada do dia e muito leite fresco. Então, dei para lembrar que, em poucos anos, nossas crianças serão adolescentes. Elas e seus amigos. Eu e meus amigos.

Nessa altura, o cacarejar dos meninos corria espaçado por compridos silêncios, risadas constrangidas e sons de tabefes sem convicção. Um joguinho de sedução. Nem me dei ao trabalho de imaginar o que poderiam estar experimentando nos desvãos da vizinhança. Nem importava. Importava tão somente minha estranha certeza de que eles estavam ali dando alguns tímidos passos, primeiros tímidos passos em direção a um mundo sonhado maior. Talvez porque tenha sido assim comigo. Talvez porque seja assim com todos. Será? Nem sei. Um mundo sonhado maior, ampliado, em permanente expansão. Maior que qualquer coisa. Nem sei o quê. Pois nem sei quem são, que bagagem carregam além do sotaque carregado do interior dessa Minas – Minas que é toda interior.

Eram meninos e sua balbúrdia tolinha já quase me embalava. Eram meninos e meninas e sua vontade de estar juntos, de ser outra coisa, de dar um passo para fora do quintal já me enternecia. Eram meninos crescendo e eu consegui me deixar tocar por sua força resoluta, por sua crueza e inocência, por sua imaginada crença em algum mundo maior que o quintal acanhado, que a ruela em curva ascendente, que a cidadezinha interiorana, que seus corpos, que já deixaram de ser corpos de criança. Então, consegui dormir.

Consegui dormir em paz por tê-los deixado em paz, por não atrapalhar seus primeiros passos, por não intimidá-los. Consegui dormir apesar de viver teimando em recordar a fúria que me rasgava, uma falta maior que o deserto do Saara, uma solidão rascante, uma vontade de bater a porta atrás de mim e ir para não sei onde. No fim das contas, entre um balde d’água fria ali e outro acolá, como os persistentes comboios caninos e seus séqüitos de infantes irreverentes, talvez tenha sido isso exatamente o que fiz.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

NOTAS SOBRE O SÉCULO XXI - onze de setembro de 2001

No dia onze de setembro de 2001, estava em classe com uma turma de jornalismo de segundo período - cinquenta alunos ou mais - acabando uma aula de história da comunicação, quando uma estudante se levantou lá no fundo da sala, agitando um celular na mão, e me interrompeu aos berros dizendo que Nova Iorque acabara de ser bombardeada. Segundo a moça descabelada de olhos esbugalhados e com pelo menos vinte e cinco anos de estrada, o Iraque invadira os EUA. Quase imediatamente, repliquei que o que ela dizia não fazia o menor sentido, que era praticamente impossível que o Iraque invadisse os EUA, mesmo que o Saddam Hussein e todo o primeiro escalão do governo iraquiano tivessem pirado. Perguntei se ela fazia idéia de onde ficava o Iraque. Ela não respondeu. Percebi um esgar de ira em seu rosto. A confusão se instalou. Todos estavam excitadíssimos, frenéticos. Vários gargalhavam – não sei se por incredulidade, gozo ou ambos. Como se tratava de uma turma de jornalismo, indaguei à jovem:

- Qual a sua fonte?

Prontamente, respondeu com inexplicável empáfia:

- Minha mãe. Ela viu na TV e me ligou para mandar que eu me cuidasse!

As gargalhadas aumentaram.

Juro que nem sorri.

Não sei se a moça virou jornalista.

*

Finalizada a aula, passei pela sala dos professores, onde entrei para ver se a TV noticiava algo que justificasse a moça tresloucada e o burburinho esparso que percebera pelo campus. Algo acontecera. Encontrei um grupo de professores boquiabertos diante da cena exibida à exaustão: um avião comercial acertara em cheio uma das torres do World Trade Center. Acidente? Atentado?

O segundo avião não deixou dúvida.

*

Dúvida.

Duvidar é humano. Duvidar é saudável.

Dito isto, é bom lembrar que o onze de setembro e o que se seguiu a ele foi uma espécie de epidemia mundial de dúvida. Dúvida e medo.

O interessante é que as dúvidas pairavam sobretudo sobre o Estado norte-americano e o governo George W. Bush. Não raro, ouvíamos – e, se não fizermos ouvidos moucos, ainda poderemos ouvir – que só ao Estado norte-americano interessava aquele morticínio. Ou seja, por tabela, deduziam que a ordem para jogar os aviões contra o WTC e o Pentágono saíra do coração do governo, ou de forças ocultas operando em seu seio.

Por que as teorias conspirativas fazem tanto sucesso?

Aqui no Brasil, entre as mais diferentes camadas da população, o nível de descrédito do Estado e do governo (seja qual for) norte-americanos é espantoso. Do mesmo modo, é surpreendente o descrédito da imprensa nacional em geral e, especialmente, da Rede Globo e da marca Globo, independente de manutenção de sua liderança entre as TVs abertas. Ainda que “duvidar seja humano e saudável” e que os EUA, o jornalismo e a Globo tenham cometido seus deslizes ao longo da história, impressiona o descrédito deles.

Não sei o tamanho do descrédito de um e outro. Sei apenas que passa por vários nichos, esferas, camadas, grupos sociais. Isso impressiona.

Se bem me lembro, na época da ditadura, o americanismo e a credibilidade da Globo eram bem maiores.

*

Alguém se lembra da cara abobada do Bush após ser abordado por um membro de seu staff naquele evento do qual participava em uma escolinha no fatídico onze de setembro? Parecia muito com os colegas que encontrei diante da TV, na sala de professores, assistindo boquiabertos a destruição das torres. E minha cara não deve ter sido muito diferente. Se é que o foi.

*

O onze de setembro deu no Ato Patriótico, aprovado por republicanos e democratas, e no recrudescimento do investimento em controle. O fantasma do terrorismo desafiava os norte-americanos a barganharem as salvaguardas democráticas em prol da segurança.  A maior vítima do terrorismo foi a liberdade, que se tornou refém do medo.

*

É emblemático que aqui no Brasil as principais dúvidas acerca da operação norte-americana anunciada como responsável pela morte de Bin Laden girem em torno de sua veracidade ou não. Bin Laden não morreu? Foi morto pelos seals ou por seus próprios guarda-costas? Bin Laden já morrera por doença e Obama só aproveitou a oportunidade para elevar seu índice de aprovação interno? A Al Qaeda entrou na onda porque a ela interessa usar a notícia da execução de Osama pelos EUA para mobilizar simpatizantes?

Também considero muito peculiar que tanta gente por aqui ache estranho a possibilidade de Obama ter ordenado a execução de Bin Laden. Ele disse publicamente que mataria Bin Laden e destruiria a Al Qaeda. Por que não o levaram a sério? Nem tudo o que os políticos dizem é pura retórica.

Típico mesmo é que a última coisa posta em questão por aqui tenha sido a legalidade da possível operação de caça e execução. Questionar a legalidade não significa questionar o duro combate ao terrorismo, muito menos justificar ou defender o terrorismo e suas ações.

Voltando à legalidade da operação Gerônimo (que nome infeliz!), parece que há brechas no direito internacional que permitiriam desculpar a ação norte-americana. É o que ecoa por aí. O problema é quando as coisas passam a funcionar repetidamente através de brechas.

Executar parece mais fácil que julgar e apenar, mesmo que a pena possa ser a morte. Por quê? Por que a recusa a um julgamento legal? Tal julgamento não poderia, inclusive, ter sido conduzido anteriormente? Por que não um julgamento à revelia? Que a Al Qaeda indicasse seus advogados! E se não o fizesse, o que me parece bastante lógico, que se procedesse pela letra da lei. 

*

Alguns argumentam que situações excepcionais exigem medidas excepcionais.

Para muitos, seria impossível julgar “justamente” Osama em um tribunal internacional ou mesmo nos EUA. As alegações giram em torno das dificuldades de construção das provas em um caso envolvendo uma organização com a estrutura da Al Qaeda etc..

Situações excepcionais, medidas de exceção... Qual o efeito para além da agradável sensação de vingança cumprida?

A política deve se reduzir à vingança?

Basta o gozo da vingança?

*

Quando eu era criança, “terrorismo” significava algo bem diferente do que significa hoje. Era um xingamento, como continua sendo. Nisso, pouco mudou. Mas, na maior parte dos casos, antigamente, os atentados terroristas visavam pessoas específicas, em geral, políticos, empresários. Salvo alguns poucos casos, não visavam coletividades, multidões. O terrorismo daqueles tempos seria melhor definido hoje como assassinato político.

Agora a coisa é bem diversa. Os atentados terroristas são espetáculos de morte, muitas mortes. Aqueles que os praticam professam algum tipo de fundamentalismo, mormente, fundamentalismo religioso. Os atentados constituem grandes espetáculos de sacrifício de infiéis. Não se trata propriamente de guerra - nem convencional, nem de guerrilha. Será que se parece com as guerras santas de outras eras? Hoje, no limite, o alvo é todo e qualquer infiel. No limite. Na prática, ou melhor, historicamente, tem sido um pouco diferente.

Fundamentalistas norte-americanos atacam seus compatriotas.

Fundamentalistas islâmicos vêm atacando a população civil (e quem mais estiver por perto) de países cujos governos têm implementado ações de intervenção militar em solo estrangeiro, solo onde todos esses atores mantêm interesses. Se o intervencionismo norte-americano, inglês etc. é, por definição, claro, permanece sob um pesado véu “de consciência” o fato dessas organizações terroristas de corte religioso operarem em uma perspectiva transnacional. Não se trata do “Afeganistão para os Afegãos” ou seja lá qual for o “país” em tela. O “projeto” é um só, a construção – a ferro e fogo – de um grande Islã, não qualquer Islã, mas aquele onde minorias fundamentalistas sejam os senhores. Ou não?

A explosão dos nacionalismos pós-Muro dos anos 90 foi empalidecida pela “guerra de civilizações” contemporânea?

Bin Laden foi um saudita, de raízes iemenitas, que lutou financiado pelos EUA, junto a tantos outros grupelhos político-religiosos islâmicos, chefes tribais etc., contra a invasão do Afeganistão pela finada União Soviética. Bin Laden foi um subproduto da extinta Guerra Fria.  É neste sentido que dizer que ele foi fabricado pelos EUA não é um erro, muito pelo contrário.

A cartografia definida pela e na Guerra Fria desarticulou-se, desmanchou.

Vem sendo substituída por um estranho desenho onde se tenta representar uma espécie de guerra de civilizações: Oriente X Ocidente; Muçulmanos X Cristãos (e “infiéis” em geral)... Será isso mesmo?

Aos atores engajados em espetaculosos conflitos que vêm marcando o século XXI parece interessar esse verniz de grandiosidade. Mártires, guerreiros, santos, super-homens!

*

Os atores da novíssima cena são entidades de estaturas diversas. Estados e grupelhos que atuam globalmente com uma desenvoltura espantosa. Nada parecido com os blocos de países, partidos e organizações político-militares que se aglutinaram nas órbitas dos grandes estados vencedores da Segunda Guerra Mundial definindo os contornos da Guerra Fria.

Qual o novo cenário? Qual o lugar de cada ator? 

*

Por falar em lugar...

O único lugar certo é o corpo, onde a gente vive e morre.

Os reféns desse estranho conflito que visa grandes audiências são os cidadãos comuns, a população civil regredida à categoria de quase servos protegidos e sujeitados aos senhores da guerra.

Mas qual guerra?

Quem se alimenta dessa “guerra” afinal?

É possível desmontá-la?

*

Recomendo:
ESPECIAIS GLOBONEWS - 10 ANOS DO ONZE DE SETEMBRO
http://blog48horas.blogspot.com/2011/08/globo-news-faz-cobertura-especial-do-11.html
E não percam as reprises!







No dia onze de setembro de 2001, estava em classe com uma turma de jornalismo de segundo período - cinquenta alunos ou mais - acabando uma aula de história da comunicação, quando uma estudante se levantou lá no fundo da sala, agitando um celular na mão, e me interrompeu aos berros dizendo que Nova Iorque acabara de ser bombardeada. Segundo a moça descabelada de olhos esbugalhados e com pelo menos vinte e cinco anos de estrada, o Iraque invadira os EUA. Quase imediatamente, repliquei que o que ela dizia não fazia o menor sentido, que era praticamente impossível que o Iraque invadisse os EUA, mesmo que o Saddam Hussein e todo o primeiro escalão do governo iraquiano tivessem pirado. Perguntei se ela fazia idéia de onde ficava o Iraque. Ela não respondeu. Percebi um esgar de ira em seu rosto. A confusão se instalou. Todos estavam excitadíssimos, frenéticos. Vários gargalhavam – não sei se por incredulidade, gozo ou ambos. Como se tratava de uma turma de jornalismo, indaguei à jovem:

- Qual a sua fonte?

Prontamente, respondeu com inexplicável empáfia:

- Minha mãe. Ela viu na TV e me ligou para mandar que eu me cuidasse!

As gargalhadas aumentaram.

Juro que nem sorri.

Não sei se a moça virou jornalista.

*

Finalizada a aula, passei pela sala dos professores, onde entrei para ver se a TV noticiava algo que justificasse a moça tresloucada e o burburinho esparso que percebera pelo campus. Algo acontecera. Encontrei um grupo de professores boquiabertos diante da cena exibida à exaustão: um avião comercial acertara em cheio uma das torres do World Trade Center. Acidente? Atentado?

O segundo avião não deixou dúvida.

*

Dúvida.

Duvidar é humano. Duvidar é saudável.

Dito isto, é bom lembrar que o onze de setembro e o que se seguiu a ele foi uma espécie de epidemia mundial de dúvida. Dúvida e medo.

O interessante é que as dúvidas pairavam sobretudo sobre o Estado norte-americano e o governo George W. Bush. Não raro, ouvíamos – e, se não fizermos ouvidos moucos, ainda poderemos ouvir – que só ao Estado norte-americano interessava aquele morticínio. Ou seja, por tabela, deduziam que a ordem para jogar os aviões contra o WTC e o Pentágono saíra do coração do governo, ou de forças ocultas operando em seu seio.

Por que as teorias conspirativas fazem tanto sucesso?

Aqui no Brasil, entre as mais diferentes camadas da população, o nível de descrédito do Estado e do governo (seja qual for) norte-americanos é espantoso. Do mesmo modo, é surpreendente o descrédito da imprensa nacional em geral e, especialmente, da Rede Globo e da marca Globo, independente de manutenção de sua liderança entre as TVs abertas. Ainda que “duvidar seja humano e saudável” e que os EUA, o jornalismo e a Globo tenham cometido seus deslizes ao longo da história, impressiona o descrédito deles.

Não sei o tamanho do descrédito de um e outro. Sei apenas que passa por vários nichos, esferas, camadas, grupos sociais. Isso impressiona.

Se bem me lembro, na época da ditadura, o americanismo e a credibilidade da Globo eram bem maiores.

*

Alguém se lembra da cara abobada do Bush após ser abordado por um membro de seu staff naquele evento do qual participava em uma escolinha no fatídico onze de setembro? Parecia muito com os colegas que encontrei diante da TV, na sala de professores, assistindo boquiabertos a destruição das torres. E minha cara não deve ter sido muito diferente. Se é que o foi.

*

O onze de setembro deu no Ato Patriótico, aprovado por republicanos e democratas, e no recrudescimento do investimento em controle. O fantasma do terrorismo desafiava os norte-americanos a barganharem as salvaguardas democráticas em prol da segurança.  A maior vítima do terrorismo foi a liberdade, que se tornou refém do medo.

*

É emblemático que aqui no Brasil as principais dúvidas acerca da operação norte-americana anunciada como responsável pela morte de Bin Laden girem em torno de sua veracidade ou não. Bin Laden não morreu? Foi morto pelos seals ou por seus próprios guarda-costas? Bin Laden já morrera por doença e Obama só aproveitou a oportunidade para elevar seu índice de aprovação interno? A Al Qaeda entrou na onda porque a ela interessa usar a notícia da execução de Osama pelos EUA para mobilizar simpatizantes?

Também considero muito peculiar que tanta gente por aqui ache estranho a possibilidade de Obama ter ordenado a execução de Bin Laden. Ele disse publicamente que mataria Bin Laden e destruiria a Al Qaeda. Por que não o levaram a sério? Nem tudo o que os políticos dizem é pura retórica.

Típico mesmo é que a última coisa posta em questão por aqui tenha sido a legalidade da possível operação de caça e execução. Questionar a legalidade não significa questionar o duro combate ao terrorismo, muito menos justificar ou defender o terrorismo e suas ações.

Voltando à legalidade da operação Gerônimo (que nome infeliz!), parece que há brechas no direito internacional que permitiriam desculpar a ação norte-americana. É o que ecoa por aí. O problema é quando as coisas passam a funcionar repetidamente através de brechas.

Executar parece mais fácil que julgar e apenar, mesmo que a pena possa ser a morte. Por quê? Por que a recusa a um julgamento legal? Tal julgamento não poderia, inclusive, ter sido conduzido anteriormente? Por que não um julgamento à revelia? Que a Al Qaeda indicasse seus advogados! E se não o fizesse, o que me parece bastante lógico, que se procedesse pela letra da lei. 

*

Alguns argumentam que situações excepcionais exigem medidas excepcionais.

Para muitos, seria impossível julgar “justamente” Osama em um tribunal internacional ou mesmo nos EUA. As alegações giram em torno das dificuldades de construção das provas em um caso envolvendo uma organização com a estrutura da Al Qaeda etc..

Situações excepcionais, medidas de exceção... Qual o efeito para além da agradável sensação de vingança cumprida?

A política deve se reduzir à vingança?

Basta o gozo da vingança?

*

Quando eu era criança, “terrorismo” significava algo bem diferente do que significa hoje. Era um xingamento, como continua sendo. Nisso, pouco mudou. Mas, na maior parte dos casos, antigamente, os atentados terroristas visavam pessoas específicas, em geral, políticos, empresários. Salvo alguns poucos casos, não visavam coletividades, multidões. O terrorismo daqueles tempos seria melhor definido hoje como assassinato político.

Agora a coisa é bem diversa. Os atentados terroristas são espetáculos de morte, muitas mortes. Aqueles que os praticam professam algum tipo de fundamentalismo, mormente, fundamentalismo religioso. Os atentados constituem grandes espetáculos de sacrifício de infiéis. Não se trata propriamente de guerra - nem convencional, nem de guerrilha. Será que se parece com as guerras santas de outras eras? Hoje, no limite, o alvo é todo e qualquer infiel. No limite. Na prática, ou melhor, historicamente, tem sido um pouco diferente.

Fundamentalistas norte-americanos atacam seus compatriotas.

Fundamentalistas islâmicos vêm atacando a população civil (e quem mais estiver por perto) de países cujos governos têm implementado ações de intervenção militar em solo estrangeiro, solo onde todos esses atores mantêm interesses. Se o intervencionismo norte-americano, inglês etc. é, por definição, claro, permanece sob um pesado véu “de consciência” o fato dessas organizações terroristas de corte religioso operarem em uma perspectiva transnacional. Não se trata do “Afeganistão para os Afegãos” ou seja lá qual for o “país” em tela. O “projeto” é um só, a construção – a ferro e fogo – de um grande Islã, não qualquer Islã, mas aquele onde minorias fundamentalistas sejam os senhores. Ou não?

A explosão dos nacionalismos pós-Muro dos anos 90 foi empalidecida pela “guerra de civilizações” contemporânea?

Bin Laden foi um saudita, de raízes iemenitas, que lutou financiado pelos EUA, junto a tantos outros grupelhos político-religiosos islâmicos, chefes tribais etc., contra a invasão do Afeganistão pela finada União Soviética. Bin Laden foi um subproduto da extinta Guerra Fria.  É neste sentido que dizer que ele foi fabricado pelos EUA não é um erro, muito pelo contrário.

A cartografia definida pela e na Guerra Fria desarticulou-se, desmanchou.

Vem sendo substituída por um estranho desenho onde se tenta representar uma espécie de guerra de civilizações: Oriente X Ocidente; Muçulmanos X Cristãos (e “infiéis” em geral)... Será isso mesmo?

Aos atores engajados em espetaculosos conflitos que vêm marcando o século XXI parece interessar esse verniz de grandiosidade. Mártires, guerreiros, santos, super-homens!

*

Os atores da novíssima cena são entidades de estaturas diversas. Estados e grupelhos que atuam globalmente com uma desenvoltura espantosa. Nada parecido com os blocos de países, partidos e organizações político-militares que se aglutinaram nas órbitas dos grandes estados vencedores da Segunda Guerra Mundial definindo os contornos da Guerra Fria.

Qual o novo cenário? Qual o lugar de cada ator? 

*

Por falar em lugar...

O único lugar certo é o corpo, onde a gente vive e morre.

Os reféns desse estranho conflito que visa grandes audiências são os cidadãos comuns, a população civil regredida à categoria de quase servos protegidos e sujeitados aos senhores da guerra.

Mas qual guerra?

Quem se alimenta dessa “guerra” afinal?

É possível desmontá-la?




quarta-feira, 14 de setembro de 2011

HOMENAGEM AOS 50 ANOS DE BRASÍLIA

DIGRESSÕES MÍTICO-AFETIVAS SOBRE UMA CIDADE MONUMENTO
(um texto anterior às visitas que fiz à capital federal)

Meu conhecimento de Brasília não é in loco. O único chão que pisei em Brasília foi o do aeroporto. Um chão de passagem. Eu tinha pressa e cansaço. Todos tinham pressa e cansaço - era uma noite de quinta-feira. E as quintas-feiras de Brasília são um mito - o dia da fuga. Eu esperava a conexão. Tantos ansiavam sôfregos por partir, por retornar a algum outro lugar. Olhos ávidos na tabela de voos. Celulares e pastas nervosas. Rostos conhecidos, rostos típicos, rostos de passagem. Eu perscrutava. Filas tensas, esbarrões, encontrões, empurrões. Quase todos se descuidaram da civilidade. Ela evadira-se-lhes das memórias.

Vencida a irritação geral, adentrei o avião. Pequeno, magro, quase raquítico. Sentei no meu lugar e esperei. E esperei. E continuei esperando até que um bem humorado comandante resolveu se apresentar e nos comunicar que teríamos que esperar mais ainda, pois, se o problema era pequeno, não podia ser ignorado sob pena de pane no ar. Ah, bom! Resignamo-nos todos, ainda que uma mulher revoltada tenha saído em protesto para, dali à uma hora, voltar cabisbaixa com a falta de alternativa. Enquanto esperava, dei para observar minuciosamente as mãos de uns tantos passageiros e tecer conjecturas sobre suas vidas, seus gostos, suas ideias. Dois pares concentraram minha atenção: as mãos enormes, brancas, visivelmente macias, de dedos muito grossos e brutos de um homem com cara de lobista ou de algum outro bicho profissional de bastidores; as mãozinhas pequenas, bronzeadas, nodosas, com um jeito de garras de ave de rapina, enfeitadas com unhas de um esquisito colorido e quilos de ouro e pedras de uma senhora sulista que fugia para o calor da região norte. Enquanto esperava mais ainda, eu revia mentalmente a imagem iluminada da cidade espraiada sobrevoada no pouso. Era estranha, quase triste. Uma coisa rasa, enorme, alastrada, esparsa. Parecia um gigantesco mapa, um campo de pouso intergaláctico. Fazia-me sentir solitária, pequena, destemida. Súbito, o avião pôs-se a correr sem muita vontade e foi se erguendo tímido, débil, lasso. Pela primeira vez na vida, senti medo em uma decolagem. Parecia que o aparelho não conseguiria subir o suficiente e que nos esborracharíamos no meio daquela planura toda. Mas o temível Fokker subiu e sustentou-se lá em cima. Quase passado o susto, ainda pude olhar mais uma vez aquele desenho de luzes tão irreal.

Quando eu era criança, as linhas de Brasília me encantavam. Sua grandiosidade me maravilhava. Brasília era um dos signos magnos do meu Brasil moderno. E parecia de brinquedo, uma maquete gigantesca, um alvo monumento futurista pousado na terra vermelha. Lúcio Costa, Niemeyer, e Juscelino eram palavras mágicas.

Aos cinco... seis... sete anos, eu adorava ser moderna. Era uma mistura de astronauta com balão de gás colorido subindo ao infinito azul, de fábrica de sorvete Kibon com gráfica de editora infantil cheirando a papel novo, de Aero Willis com linha de produção da Coca-Cola, de reportagem ilustrada sobre a CSN com reclame de eletrodomésticos GE, de sabonete Eucalol com decalque de ursinho no azulejo do banheiro, de supermercado de gôndolas abarrotadas com personagens Disney patinando no Holiday On Ice, de iogurte Vigor em caixinha com camiseta Hering estampadinha, de cheiro de Mandiopan estufando na frigideira com a chamada para o Túnel do Tempo, de conversível vermelho do amigo solteirão do pai com a atraente parafernália da seção bancária, de estampa Pucci em cores cítricas no vestido démodé que a mãe aposentou com sundae gigante depois da natação no comprido balcão da lanchonete estilo anos 50, de parentada no sábado na churrascaria lotada com estrogonofe no almoço de domingo no clube, de Perdidos no Espaço misturado com chocolate quente cremoso numa tarde chuvosa depois do colégio, de esperar o pai chegar do consultório com a escalada do telejornal da Globo, de Brasília na Manchete com Brasília na televisão que ficou colorida. Ser moderno era ouvir a contagem para a TV entrar em rede via satélite.

À medida que eu crescia, Brasília se mostrava cada vez mais inóspita... com seus generais, fardas, tanques, eventuais fechamentos do Congresso e uma distância crescente. Brasília me ensinava a ter saudades de um Rio capital federal, que só conheci de ouvir falar, de ler e através de vestígios visuais e arquitetônicos. Não! Não foi bem assim! Creio que durante muito tempo, o Rio ainda se via capital... e até se comportava como tal, com orgulho de si e uma adorável arrogância.

Tenho uma vaga lembrança de meu pai ter cogitado ir trabalhar em Brasília. Se cogitou, foi coisa passageira, sem maiores consequências além do meu medo de ter que sair da minha cidade para ir morar tão longe, tão distante de mim mesma. Eu não queria ser Brasília. Ainda bem que meu pai sempre adorou esquinas! Nasceu há setenta e um anos no bairro imperial de São Cristóvão - a república ainda era jovem, mas já não era a Velha. Meu pai é uma criatura da trama urbana, apesar de seu "passado colonial rural" herdado da minha avó - mas isto também não é Brasília.

Quando da posse do general Figueiredo, o último presidente militar, no pátio do colégio, nos projetamos em uma Brasília imaginária, cheia de ruas e esquinas, e protestamos contra mais aquele general eleito por um remoto colégio eleitoral. Em algum álbum, guardo fotos de nossa catarse juvenil, rebelde, engajada.

Universitária, militante estudantil, conheci companheiros e companheiras brasilienses e apreciei algum - não muito - rock do planalto central. Os jovens de Brasília se sentiam especialmente oprimidos. Muitas moças reclamavam da "vigilância sexual": todos conheciam todos; todos queriam saber de tudo; logo, tudo deveria ser muito bem escondido. Achei aquilo uma aberração! Muitos dos jovens militantes estudantis faziam greve de fome contra aumento das mensalidades nas privadas, pelo ensino público e gratuito e contra a moribunda ditadura, mas não suportavam desafiar os costumes abertamente! Eu, heim! Credo! Voluntariosa extremada, concluí que Brasília fazia mal à saúde - e não só à dos candangos!

Uns vinte anos depois, sentada na mureta de um canteirinho bem vagabundo no pátio de um prédio público deveras decaído, metida entre um grupo de doutores de tantas partes do país em busca de uma rara hipotética oportunidade de emprego minimamente decente em tempos bicudos, me peguei falando de Brasília com alguns que moravam por lá e outros que não moravam. Não recordo que alguém tenha dito que nascera por lá. Um antigo morador defendeu timidamente a "cidade" dando conta de que a população reinventava o público naquele espaço de passagem:

- Dentro das quadras, o pessoal refaz a rua!

Não consegui me animar com a ponderação do doutor otimista. Olharam-lhe de soslaio, com um sorrisinho irônico escapando entre os lábios.

Alguém quase gargalhou ao lembrar-se de ter testemunhado, em uma rápida estada em Brasília, uma batucada de bar que apinhara mais de cinquenta músicos de fim de semana - uma quase orquestra de renitentes desesperados! Para quem mora em uma cidade como o Rio, que, apesar dos pesares reais e televisivos, favorece os encontros, a imagem da orquestra de botequim num solitário buraquinho de uma superquadra é tragicômica! Falta a rede, a trama urbana!

Em Brasília, as redes são outras! Verdadeiras teias de aranhas vorazes e venenosíssimas formando um sistema de intrincado bordado... Mas não sei se, hoje, Brasília é mais corrupta do que já foi algum dia, outros tantos dias. Desde que saiu do papel, ela fez a alegria dos empreiteiros, aos quais, segundo as más línguas, por outras vias, ainda serve com gosto - lembremos da CPI do Orçamento e de seus célebres anões!!! Gente! Onde andam os anões?!?!?!

Cá no Rio, o eclético Palácio do Catete resiste transformado em Museu da República. Já nem sei dizer se Vargas se matou por tão pouco ou se por muito. Afinal, seu gesto adiou o golpe por dez anos! Sem dúvida, os padrões mudaram!

A geografia do Rio Distrito Federal está desenhada no coração da cidade. Cada edifício republicano ou seu vestígio é um nó da urbe que é porta, é porto, e ainda é vitrine de um outro Brasil, carente de projetos e farto de expectativas frustradas. O Rio busca reconstruir a identidade perdida. Às vezes, se perde num limbo de memórias e mitos distorcidos. O que fazer?

Sentada entre os colegas doutores transbordantes de incertezas e desencantos, me deixei divagar alinhavando um sonho com retalhos de passados, desejos e imagens de TV: Brasília já não era mais a capital da República, mas, uma apoteótica Vegas sul-americana formatada em parque temático do modernismo brasileiro. Para lá, acorriam multidões de turistas de todos os cantos do planeta - e quiçá de outros planetas -, ávidos por jogar o destino nos dados, na roleta, nas cartas ou mesmo em modestos caça-niqueis - alguém joga o destino em caça-niqueis? Hordas de exuberantes dançarinas bioplastificadas enchendo os olhos e demais órgãos intumescentes, devidamente aditivados por viagras e cialis, de lobos cinzentos prolíferos em metal sonante. Bofes bombados serpenteando seus atributos hipnoticamente diante de portentosas harpias, determinados carcarás e demais aves rapineiras. Nesta Brasília reciclada, vocações não mais se perderiam em arrastados processos por corrupção passiva, ativa, reativa ou hiperativa. Refinados talentos perseguiriam contumazes a fortuna desmedida e volátil. A grande roda acelerada no paraíso da intemperança, devorando e vomitando ao acaso. Uma zona quase franca, limítrofe, onde quase tudo é possível mediante um módico tributo. Uma quase república completamente sadiana gozando numa intensa voragem deletéria. Venham, senhoras e senhores, façam suas apostas! Uma Brasília mais verdadeira e plena, nobre em certo sentido, completamente não-burguesa - desprovida de hipocrisia.

Como a outra, nossa Vegas geraria vários subprodutos na indústria cultural: filmes, seriados policiais, romances devastadores... Teríamos um CSI Brasília, um Cassino... (Quem faria o Bugsy Mallone tupiniquim?)

Durante o dia, quem quisesse fazer um tour a pé pela árida esplanada seria mimoseado por sprinklers aspergindo água fresca perfumada. À noite, quem quisesse poderia assistir ou participar de rachas fatais, incrementados por espetaculares perseguições policiais aos sobreviventes. Os hospitais se especializariam em traumas e cirurgias plásticas radicais tipo Extreme Make Over - um pouco de Hollywood para incrementar! E ainda nos renderia uma versão antropofágica do Nip & Tuck!

Alguém me olhou com espanto. Outro estimou os meios para viabilizar a fantasia transfigurada em projeto. Outros logo quiseram saber onde ficaria o distrito federal. Sugeri o Rio. Um baiano pensou na velha Vila Rica. Um pernambucano, em Salvador. Um paranaense sugeriu São Paulo. Vários reclamaram. Um mineiro concordou comigo. Enquanto sorríamos de nós mesmos, algum burocrata chegou com seu pragmatismo rasteiro, nos despegou de nossa fútil brain storm e nos arremessou sem dó nem piedade na vala comum das tradicionais práticas viciosas que articulam as diversas instâncias da vida social nacional - das micro, às macro -, de tal modo arraigadas, que tantos juram tratar-se de uma segunda natureza. Ah! A burocracia... as instituições... a coisa que deveria ser pública... Ah! Brasília é tão somente o espetacular bode expiatório de uma cultura política patrimonialista, clientelista e personalista que a sociedade brasileira - em todos os seus estratos - não se cansa de atualizar!

Creio que ninguém acredita que o Rio é, por natureza, a salvação da política brasileira. Basta olhar nossos magníficos estadistas sufragados nas nossas modelares urnas eletrônicas pela maioria de nós. Mas convenhamos: despachar no Catete é virtualmente muito diferente de despachar no Palácio do Planalto. Aqui, os palácios estão amarrados à cidade. Basta experimentar um dos freqüentes protestos diante do Guanabara. Ou caminhar da Câmara à Assembléia... dela ao Catete, dele ao Laranjeiras... dele ao Guanabara... dele ao Palácio da Cidade... Em nenhum momento estaremos fora da urbe, mas, sempre, atados a seus nós, urdindo e reurdindo a vasta rede que nos enlaça... mexendo em pesos, contrapesos, alterando a paisagem da qual participamos.

...

Brasília ainda me parece um sonho abduzido.

O IMAGINÁRIO DO MAL E O CONTROLE (1ªs notas)


[INT. Departamento de Polícia - CORREDOR -] NOITE


(Com algemas nos seus pulsos e tornozelos, Richard McQueen é escoltado para fora. Ele se vira e olha para a câmera.)


(BRASS fala com a câmera.)


BRASS: Sim, temos uma confissão. Ele não escolheu os pés das mulheres, os pés das mulheres o escolheram. Ele acendeu as velas, ele botou uma música, ele pensou que estava em um encontro.


PRODUTOR: (O.S.) Mas ele explicou, você sabe, porque ele fez isso?


BRASS: Ah, sim. Ah, com certeza. Sua mãe era uma prostituta, ela o colocou debaixo da cama enquanto ela fazia o seu negócio com os pés balançando na borda da cama. Ele observava seus pés, eles eram perfeitos. Você sabe, eu não sei se isso é verdade.


PRODUTOR: (O.S.) E sobre a coisa do bombeiro?


BRASS: Não sei, acho que ele queria ser um bombeiro quando crescesse. Você não quis? Veja, jurados amam explicações, eles as querem precisas e claras. Eles não querem saber que vivemos em um mundo aleatório, eles querem sentido. É muito simples.


CSI. "I LIKE TO WATCH". SCRIPT (CSI. “FETICHE”. ROTEIRO ) http://www.crimelab.nl/transcripts.php?series=1&season=6&episode=17


Em 2005 publiquei no site da Midiativa – Centro Brasileiro de Mídia Para Crianças e Adolescentes - um pequeno artigo sobre o gênero televisivo “seriado policial”, abordando alguns modelos conhecidos (http://www.midiativa.tv/blog/?p=598). O foco recaía sobre o contraste entre o modelo predominante nos anos oitenta – que privilegiava a ação, a imersão sensorial, o formato vertiginoso – e o modelo predominante nos seriados contemporâneos – investigativo, voltado para a produção de provas, de verdades, de sentidos a serem atribuídos aos atos criminosos, às obras do Mal. Os seriados policiais participam do imaginário do Mal contemporâneo.

Até certo ponto, nesse artigo, eu comemorava o que me parecia ser uma aposta na palavra como caminho tanto para se pensar o Mal como para usufruir catarticamente de fabulações acerca dele. Entre o brutamontes mais ou menos charmoso que corre atrás de bandidos e cai sobre eles sem maiores complicações dramáticas e o cientista, o médico-legista e o promotor público eivados de preocupações éticas no trabalho de produzir provas, eu tendia para a turma pensante. Ainda tendo. Considero mais interessante jogar um jogo de inteligência com o telespectador do que repetidamente limitar-se a exacerbar seus sentidos, a estressá-los.

Todavia, essa voga contemporânea que privilegia a trama, o drama e a inteligência do espectador, revela um traço, uma espécie de sintoma que assola o imaginário contemporâneo acerca do Mal: o horror ao vazio, o horror à ausência de sentido, o horror ao imprevisível, ao incontrolável.

Não se trata de uma novidade a “compulsão” do ser humano a atribuir sentido aos acontecimentos e a querer atuar preventivamente. Está conosco desde sempre. Nada de mais ou de menos. Conjuração das forças da natureza, sacrifícios a deuses, pesquisas médicas e de mercado têm no esforço de antecipação seu parentesco comum. Todavia, nossa sociedade globalizada, como nenhuma outra, tem sido capaz de produzir um volume inédito de conhecimentos e tecnologias voltados para controle e prevenção. Que fique claro que não se trata de um movimento imposto “de cima para baixo”. Nem no sentido político, nem no sócio-econômico. A demanda de controle atravessa a sociedade! Parece que quanto mais dispomos – ainda que desigualmente – de instrumentos de controle, mais clamamos por eles. Talvez porque, ainda que disponhamos de tais instrumentos, muito nos foge ao controle. E, cada vez que um grande evento de alcance coletivo ou que um irrisório acontecimento doméstico esfrega em nossas caras o limite de nosso poder sobre nosso destino, tendemos a nos sentir miseráveis, a nos revoltar e a gritar por explicações. “Quem puxou o meu tapete?” Parecemos crianças mimadas experimentando o princípio de realidade.

Hoje em dia, estamos envolvidos e nos envolvemos com mecanismos e dispositivos que parecem apontar para uma situação de transparência social – um estado, ora temido, ora desejado. Muitos demandam esse ideal de sociedade ansiando pela proteção imaginária de uma miríade de olhos vigilantes conectados em rede a defendê-lo contra todo o mal do mundo. Outros temem exatamente essa rede e seu imaginário poder infinito recaindo sobre nossos ombros, transformando-nos em autômatos, desprovidos de elã, zumbis. Não raro, um e outro – os que requerem mais controles e os que desconfiam deles - se confundem. Quer dizer, se fundem no mesmo indivíduo, em inúmeros indivíduos. Exigem proteção e denunciam a ineficácia de instrumentos e aparelhos sociais. Ao mesmo tempo, acusam a intromissão indevida dos mesmos em suas vidas. Às vezes, as coisas parecem muito confusas – e realmente o são.

Por exemplo: para muitos, a internet é um instrumento essencialmente “bom”, pois, segundo eles, nos permite caminhar na direção de uma maior transparência social, para uma situação de maior democratização da informação e da comunicação. Sem dúvida, não há como negar uma série de características extremamente positivas da internet. Contudo, há os que a consideram como parte de um sistema mais amplo de organização social, em que bancos de dados são permanentemente alimentados com informações as mais variadas ao nosso respeito, as quais podem ser cruzadas entre si e acessadas, sem a nossa permissão, de inúmeros pontos de uma imensa rede em que estamos inseridos através dos aparelhos de Estado, do sistema bancário, do sistema de saúde, de serviços e dispositivos os mais variados, como telefones com GPS etc.. Gilles Deleuze pensou esta nova organização social e a chamou “sociedade de controle”. Esta seria a forma contemporânea desenvolvida pelo capitalismo e se oporia à “sociedade disciplinar”, cuja caracterização é inspirada nos trabalhos de Foucault. A “sociedade de controle” seria a mais nova forma assumida pelo capitalismo

Segundo Delleuze, diferente da sociedade disciplinar, onde o confinamento em sucessivas instituições de moldagem dos sujeitos prevalece e a produção é o foco, na sociedade de controle, espaços abertos, fluxo contínuo e modulação subjetiva ganham o proscênio no estágio de “sobre-produção” do capitalismo (venda de serviços, de ações).

A ideia de um esforço constante de vigilância tendo por objetivo a administração de riscos, tão disseminada na cultura contemporânea, é coerente com a forma desenhada por Delleuze. Mas quando pensamos na questão do confinamento, as correspondências entre realidade e teoria se complexificam. “Formação/educação continuada”, conexões em redes de cooperação laborativa etc. assinalam transformações nos regimes de educação e trabalho que extrapolam os limites do confinamento disciplinar. Por outro lado, é fato que, embora se desenvolvam alternativas ao confinamento hospitalar e mesmo prisional, é notável tanto o número de presos confinados em sociedades como os EUA (e mesmo no Brasil), como uma espécie de pressão social pelo confinamento não só de criminosos, mas de “estranhos” e “potencialmente criminosos”. O aumento da circulação geral através do planeta e que tem lugar privilegiado nas megalópoles e cidades globais parece ter multiplicado exponencialmente o medo geral do contato com estranhos e da possível “contaminação” através dele. Ao mesmo tempo em que a tendência ao contato e ao contágio revigora-se, a tendência ao medo e a busca de isolamento e exclusão também parecem fortalecer-se. E ainda: se dispositivos digitais viabilizam que viajemos virtualmente pelo planeta a trabalho ou a lazer, o fazem sem requisitar nosso deslocamento físico, ou seja, permitindo que nos confinemos voluntariamente onde melhor nos aprouver. O trabalhador contemporâneo pode ter uma jornada de trabalho flexível e interminável – e nem precisa sair de casa.

Neste mundo de fluxos múltiplos, contínuos, em rede, a realidade do corpo permanece nos assombrando com a perspectiva da finitude. Apesar de todas as conquistas biomédicas, da bioquímica, da bioengenharia, de toda sorte de próteses e engenhos úteis para prolongar e aumentar a chamada qualidade de vida, ainda não superamos a barreira da morte, se é que algum dia a superaremos. A morte e todos os medos que, em última e primeira instância, dela provêm continuam nos assombrando.

A vigilância permanente, muito mais refinada no contexto da “sociedade de controle” do que no da “sociedade disciplinar”, é estimulada e requisitada por uma espécie de medo latente que perpassa a sociedade e domina a contemporaneidade. Tão afeito à ideologia da rede, a qual nos é tão cara, o fantasma do contágio se dissemina pelo corpo social. Hoje, o temor da epidemia sanitária não é menor do que o da epidemia comportamental.

Aqui tomo a liberdade de usar a expressão “sociedade de controle” em um sentido que não é aquele estabelecido por Deleuze. Penso em conferir a ela um sentido sobretudo empírico. Deixá-la desviar. Neste desvio, ela é fato e ficção. É fato se considerarmos todo arsenal de saberes, técnicas e apetrechos que desenvolvemos e que dominam o ambiente em que vivemos. Eles se desdobram em nossa subjetividade, na forma de forças que nos governam, na feição do campo de possibilidades que se nos apresentam etc.. É ficção porque é um ideal – sonho ou pesadelo – que ora perseguimos, ora nos sentimos perseguidos por ele. 1984 e Admirável Mundo Novo são exemplos de fabulações sobre um mal que podemos facilmente identificar com tal rubrica. E é ficção sobretudo porque a vida, o mundo, o tempo teimam em nos surpreender, em nos pegar “com as calças nas mãos”.

Fato e ficção, a sociedade de controle parece privilegiar a retórica do medo. Justamente quando muitos indicadores (históricos, científicos etc. [p.ex.: p.199, SENNETT, Carne e pedra - http://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=aer_rXn_OZoC&oi=fnd&pg=PA7&dq=richard+sennett+carne+e+pedra&ots=yS_k9tR-xp&sig=2QVjNYp5DQrEFfRiZpmD7ptZAXs#v=onepage&q&f=false]) sugerem que jamais estivemos tão seguros, somos assaltados por uma sensação aguda de fragilidade, de impotência. Não raro, o medo se converte em pânico, que se converte em revolta, que se transmuta em fúria. E explodimos, perdemos o controle. O troglodita revive em nós. A razão míngua. Mas, ainda assim, racionalizamos: a desrazão é do outro, está no outro. Nós somos as vítimas; eles, os culpados.

A sede de investigação e interpretação patente nos seriados policiais contemporâneos, herdeiros do romance de detetive do século XIX, configura uma tentativa de racionalização empreendida em um contexto cultural global em que uma espécie de “fobia” parece dominar. O mal que pode ser nomeado, atribuído a um sujeito e, sobretudo, explicado é uma ideia tranquilizadora. O mal domesticado se contrapõe ao mal gratuito, que não se justifica nem busca se justificar, ao puro Mal.
Um momento raro e precioso na TV aconteceu no décimo sétimo episódio da sexta temporada de CSI – “Fetiche”. Enquanto investigavam um caso, os CSIs eram seguidos por uma equipe de um reality show. Ao fim da investigação, o capitão Jim Brass, interpretado pelo ator Paul Guilfoyle, é indagado sobre a importância do trabalho dos CSIs para o estabelecimento dos motivos de cada crime ocorrido em Las Vegas. Brass, responde mais ou menos o seguinte: que essa história de motivos, de explicação, é uma ilusão da qual as pessoas precisam, mas que eles – os profissionais - bem sabem que a maior parte do que acontece não faz qualquer sentido, não tem motivo ou explicação, que são acontecimentos aleatórios. Creio que Brass concordaria com a ideia de que o ser humano rejeita profundamente o aleatório - diante dele, desmonta.

SOBRE O SENSACIONALISMO


Segundo o Dicionário Aulete Digital:

(sen.sa.ci:o.na.lis.mo)
sm.
1 Caráter ou qualidade de sensacional.
2 Interesse em buscar ou explorar assuntos sobre fatos ou pessoas, que possam provocar escândalo, impacto e chocar a opinião pública.
3 A divulgação dessa matéria em jornais, revistas, rádio, televisão etc.
[F.: sensacional + -ismo.]

O sensacional é espetacular, atrai e prende o olhar. É intenso, vívido, vivo. Ele é fora de série. Mas como a matéria do sensacionalismo pode ser fora-de-série se ele se repete, se alastra e habita nosso cotidiano? Como aquilo que é supostamente especial pode ter se tornado banal, trivial, corriqueiro?

O sensacionalismo tem um caráter ritual que costuma ser negligenciado.

Tanto os intelectuais profissionais como o famigerado homem comum têm por hábito emitir juízos de valor sobre o fenômeno. Em geral, julgam-no negativamente. Quanto às possíveis explicações que imaginam, costumam limitar-se a variações acerca da ganância das empresas de comunicação. É inegável que, desde seus primórdios, em momentos críticos, empresários do ramo tenham lançado mão do sensacionalismo para elevar suas receitas. Aliás, vale notar que, hoje, ao nível planetário, a chamada imprensa tradicional vive um momento crítico. Não devemos esquecer que para que a receita aumente, é necessário que o consumo – o público, a audiência – cresça. É comum explicar a atração do público pelo sensacionalismo como efeito do baixo nível educacional, intelectual e/ou de uma hipotética decadência moral da sociedade. É fato: o sensacionalismo é fácil – uma espécie de fait-divers “do Mal”! Por isso, dizem, agrada aos simples e aos simplórios. Quanto aos demais, caem na vala comum da decadência moral e/ou da perversidade. Dizem.
Alguns – intelectuais, políticos, formadores de opinião e quejandos – se empenham em projetos visando suprimir tamanha chaga da sociedade contemporânea. Tornam-se patronos de causas tais como: a censura dos meios de comunicação, muitas vezes, batizada com nomes singelos, que nos remetem a uma espécie de paraíso virtuoso; a estatização geral de tais meios de comunicação, a qual baniria definitivamente de nossas vidas a praga da cobiça e da monetização dos valores (neste caso, o Estado é imaginado como uma espécie de pai amoroso, desinteressado tutor de nossa perpétua imaturidade) e tantos outros projetos que têm como objetivo comum nos proteger da mentira e das emoções baratas. Somos ingênuos, inocentes, frágeis, pueris. Manipulados, manietados por forças incrivelmente poderosas que pairam acima da sociedade. Precisamos ser protegidos. Se não o dizem claramente, insinuam.
No tempo em que as mídias irradiadas dominavam o cenário, não era difícil que muitos dos paladinos das boas intenções caíssem na esparrela da manipulação a serviço da ganância para explicar o sensacionalismo. Hoje, quando a comunicação em rede já alterou radicalmente a cartografia do campo comunicacional, podemos observar de forma direta a força de atração do sensacionalismo. A chamada interatividade expõe de forma cabal a volúpia da maledicência. Já não nos limitamos a consumir o espetáculo da desgraça alheia. Já não nos limitamos a comentar junto aos círculos íntimos ou pessoais – família, vizinhança, trabalho, clube. Não. Hoje nos empenhamos em repercutir e “opinar” sobre escândalos, desgraças e que tais em rede – sites de relacionamento, blogs, “comentários” de jornais, revistas virtuais etc.. “Opinar”, acusar, condenar em rede é um deleite de grande intensidade – atire a primeira pedra quem não o experimentou! E generalizado – tanto no que se refere ao objeto como ao sujeito. Quer dizer, pode-se falar mal de tudo ou quase tudo, ainda que certas causas e personagens se mostrem empiricamente mais atraentes que outros. Certo senso comum do politicamente correto levanta a galera. Celebridades, famosos, poderosos, ricos e “privilegiados” (uma palavra de contornos bastante nebulosos na atualidade) em geral são os personagens preferenciais. Quanto ao outro lado, o da “opinião”, ele se compõe de gente das mais variadas classes, estratos e nichos sociais. Todos cobram sua cota de participação no espetáculo da queda alheia – um verdadeiro deleite.
A visibilidade é um bem valorizado, desejado, buscado com voracidade em nosso tempo. Quando o afirmo, não faço julgamento moral – trata-se de uma constatação. Assim é porque talvez a ameaça do anonimato seja tão vívida, robusta, promissora. Tornar-se visível, ainda que de modo fugaz, pode criar a ilusão de reconhecimento, de permanência. E, em nossos dias, a visibilidade não é atingida apenas por méritos substanciais. Muitas vezes – a maioria delas talvez – a notoriedade acontece acidentalmente ou quase. Os visíveis equilibram-se em uma fina linha acima de um profundo abismo. Quanto mais visível, mais profundo é o abismo. Carregam a mácula da aura com a qual os coroa a sua visibilidade. Frágil aura. Seu glamour – que raramente tem a ver com suas habilidades gramaticais, conforme sugere a etimologia – é sua pecha, sua perdição. A etérea marca ora os aproxima dos deuses, ora, dos monstros, ou, simplesmente, da mais chã abjeção. Às vezes, personagens obscuros irrompem em cena como enigmáticos protagonistas de algum espetáculo extremo. Tornam-se subitamente visíveis. A rigor, qualquer um pode brilhar em cena por alguns dias, horas, minutos ou mesmo segundos. A circunstancial excepcionalidade se gera ao acaso. Pode perdurar ou chegar ligeiro ao ocaso. Muitos acreditam que algumas pessoas podem chegar ao crime hediondo simplesmente pela notoriedade, pelo reconhecimento, ainda que às avessas. Inúmeras chacinas são fabuladas assim pelos explicadores de plantão. Não necessitamos de um grande esforço de memória para listá-las.
Costumamos crer que, noutros tempos, deuses, heróis, reis e pais eram figuras mais sólidas do que hoje nos parecem. Figuras estas às quais creditávamos nossa sorte, nosso destino. Nossos senhores. Acreditávamos que deles dependíamos. Éramos gratos por sua boa vontade, pelas graças que nos concediam. Os amávamos. Revoltávamo-nos ante seus caprichos, sua dura lei. Os odiávamos. Amor e ódio por nossos deuses-demônios eram faces antagônicas e complementares de uma coisa só, ou quase – nossa lei, nossa ordem, nosso ideal. O que nos fascina guarda íntima relação com o que nos enoja. Não tenho certeza acerca do quanto esses deuses e senhores do passado eram realmente sólidos, estáveis, perenes. Todavia, conhecendo um pouquinho de história, não é difícil imaginar o quanto o ritmo da vida, a percepção do tempo e a do tempo das coisas mudaram nos dois últimos séculos. Citando o Marx do Manifesto Comunista, Marshall Berman disse, acerca da modernidade, que “tudo que é sólido desmancha no ar”. Hoje, na célebre era pós-moderna, fascinar é um valor e o fascínio é volátil, ou melhor, a duração de seus objetos é ínfima. Perdurar na atualidade é um desafio que poucos enfrentam com sucesso. Erguemos e destroçamos ídolos em um ritmo alucinante. Eles passam. Materializam-se e desmaterializam-se ligeiros. Talvez por isto, dessubstancializem-se. É corriqueira a declaração de que as celebridades são vazias. Sua vida útil pode ser ínfima. Há colunas em algumas publicações que avaliam em que ponto de sua trajetória se encontra uma celebridade. Do nascimento à queda, passando pelo apogeu, o tempo voa.
Em Totem e Tabu, Freud é deveras didático quanto à nossa disposição para sacrificar nossos deuses em seus próprios altares, para canibalizar nossos senhores. Não somos piores ou melhores do que jamais fomos. Continuamos a devorar nossos senhores, nossos ídolos em seus altares. Eles se sucedem como mercadorias em uma linha de montagem. Seus altares conectam-se em rede. Suporta-os a página, o écran da TV, do computador, do celular... Apresentam-se etéreos, mas, se não o sabemos, desconfiamos que são como nós e adoramos desafiá-los a respeito. E mesmo aqueles que não se confundem com a mera celebridade, estão submetidos à mesma lógica. Como os deuses, os reis, o pai primordial.
O sensacionalismo é a forma que essa verdadeira volúpia assume nos dias de hoje, a volúpia de liquidar aquele que adoramos, a quem atribuímos nossa sorte, nosso destino, nosso descaminho. Trata-se de uma catarse – a encenação da queda de um ídolo. Talvez a atual volatilidade de nossos ídolos justifique nossa compulsão à repetição: as quedas se sucedem, se amontoam, se atropelam. Amamos o sensacionalismo sobretudo porque idealizamos o Bem e o Mal. Porque projetamos em um outro aquilo que não controlamos ou que julgamos, convenientemente, não poder controlar. Por tanto, somos insaciáveis.