Um som grave vinha da entrada da baía. Amélia não sabia se o navio entrava ou saía. O ar noturno se deslocava suave. Vinha úmido, fresco, perfumado de mar. Na casa, todos permaneciam acordados. Cada qual no seu canto. Alertas. Aceitar o sono era difícil. Não que os dias fossem mais fáceis. Amélia frequentemente desejava que as noites fossem mais longas. Gostava do apito profundo, da brisa fria, do silêncio e da escuridão. Preferia que os outros dormissem e que apenas ela vagasse flutuando em vapores etílicos. Às vezes, era como se o silêncio e a escuridão varressem dela vergonha, culpa, inibição. Veloz. Pulsava poeta noturna. Queria noites mais longas.
As aranhas vinham pelos reflexos dourados que a mínima luz da vela acesa no canto mais negro da varanda tecia pelas paredes de pastilhas de vidro entremeadas de líquen e musgo. Às vezes, elas eram maiores que um esquilo. As lagartixas se fartavam quando isso acontecia.
Amélia vestia um velho robe de seda verde com estampas de folhas pretas que pertencera à sua avó. Estava guardado em um armário - intacto. Deixava os longos cabelos castanhos cairem pelas costas. Vez por outra, uma lagartixa parava sobre a mesa, ao lado do copo de Porto, encarando-a. Imaginava o dia em que seria surpreendida por uma pergunta. Frequentemente, ficava tentada a coçar a cabeça de uma ou outra mais delicada. Mas, desde a cena de destroçamento de uma grande aranha peluda por duas pequenas osgas filhotes, tem afastado esse impulso com determinação.
Quando sua avó era jovem, esses animais não existiam. Apenas passarinhos, abelhas e pequenas lagartixas de pele macia ousavam invadir a varanda onde a velha Amélia gostava de tomar o café da manhã. Também não havia o emaranhado de trepadeiras de flores azul néon praticamente encobrindo toda a vista. Na verdade, uma proteção. As trepadeiras tomaram vorazes o velho condomínio de mais de vinte andares. São como um escudo.
Nas últimas décadas a variedade vegetal e animal tornou-se extremamente opulenta. Radiação? Vazamentos tóxicos? O mundo mudou muito rapidamente. Cheio de novidades.
Amélia é nome antigo. Nome de sua avó - mãe de seu pai - e da avó de sua avó. A família cultiva nomes antigos.
A semelhança física entre a atual Amélia e sua avó é notável. Faz algum tempo que só se encontram virtualmente. E os encontros têm que ser rápidos. Para não serem detectados. Isso se repete há cerca de três anos. Amélia voltou para a cidade incógnita. Não foi difícil se alojar no apartamento. Poucos vizinhos. Raríssimos os de outra época. Dois apenas. Um morreu subitamente dias após sua chegada. Uma velhinha chorou ao vê-la, achando que a outra Amélia tinha retornado do futuro. Há boatos de que isso agora é possível. Ninguém levou a velhinha a sério. Ninguém a escutava. E ela acostumou-se a não insistir.
Amélia preferiu não desfazer o mal entendido. Não deveria fazê-lo.
Como ela, seus companheiros de jornada eram discretos, quase imperceptíveis em seus movimentos e conversas. Evitavam os corredores e escadas, escalando a vigorosa trepadeira no meio da madrugada. Silenciosos.
Ninguém imaginava que o futuro de tantos era traçado naquele estranho canto do mundo.

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