quarta-feira, 17 de novembro de 2021


Vivi via um V invertido - um V - quando pequena e olhava para o pai lá no alto. Seu pai. As pernas de seu pai inVertiam o V. E ViVi passava sob elas. E olhava. E voltava, se abrigava sob elas. Uma cabana de índio de filme de Velho oeste. Velho - com V. Um telhado de duas águas - também pode sê-lo. Seu pai era grande - com G. Era noVo - com V de avô, de Vasco, de Verde. V de Vértice. Seu pai era um Vértice, uma seta apontando para o Alto, Além. O A de Além é como um Vértice, um V inVertido. Vertente. Um Vale. Água Vertendo. Um Vórtice.  Vertigem. Vertigem do Vinho - Verde - que o pai Verte no copo, na taça que parece um V, mas não inVertido. ViVi - com V, com dois Vs - Via, ViVia - também com dois Vs.

ViVi imaginava seu pai sempre joVem - com V - pele macia, cabelos Vermelhos - também com V -, um leão. Todo Vértice.

O leão rugiu, reinou na saVana. Um rei. E enVelheceu, Vergou. E, com a fraqueza que aparecia, também apareciam mais teimosia, determinação, Vontade.
Vivi Viu a Velhice, o pai Velho leão, menos Vermelho, juba descorada. Verteu algumas lágrimas. Virou algumas taças. ViVi ViVeu e Viu seu pai ViVer. E Morrer - com M de Mãe, de Mar, de AMor. O velho leão, trôpego, teimoso. Solar em seu ocaso.
O tempo Voou Veloz, leVou Velho o joVem leão Vermelho. Vivi ViVeu. ViVe.
O tempo Veloz Voou e leVou o para sempre joVem leão Vermelho. Velho, joVem, Vértice.
V de Vontade. V de verdade.

terça-feira, 9 de novembro de 2021



Chovia muito e Bárbara estava eufórica. Chorava e gargalhava em arroubos alternados. A rua estava vazia e, protegida sob a larga marquise do velho prédio comercial no Centro, ninguém percebia seu estado. Uma cortina de grossos pingos e névoa úmida a protegia de improváveis olhares dos raros passantes que corriam fugindo do temporal.

Tinha sacado a metade da conta conjunta que mantinha com a companheira, a metade dos investimentos que passara para a conta na noite anterior e a metade da poupança. Não era uma fortuna, mas também não era de pouca monta. Sacou, abriu uma nova conta em seu nome e depositou o dinheiro.
Finalmente tomara coragem de decidir. Nem sabia bem como isso se deu - a decisão. Mais que decisão. Era um saber o que queria... ou desejava. Um saber.
A filha avisou que dormiria na casa do namorado. Foi como uma senha. A conversa, o anúncio, o adeus seria hoje. Nesse dia de chuva forte.
Os minutos se acumulavam: 10... 30... 50... A chuva não arrefecia e Bárbara - a roupa encharcada, apesar da marquise - começou a sentir frio. Já passava das dezoito horas e previa a possibilidade de alagamento pelo caminho. Tentou acenar para os raros táxis, mas todos passavam cheios. A bateria do celular estava por um fio. Enviou uma mensagem para Jurema: "Tentando um transporte. Bateria fraca."
A mensagem anterior, às dezesseis horas, fora: "Precisamos conversar. Não agende nada para hoje."
De algum modo, ainda gostava de Jurema e acreditava que ela merecia consideração.
Não havia uma briga, um incidente, uma "gota d'água que faltava". Não se tratava disso.
Lavou o rosto na chuva decidindo ir até à estação de metrô mais próxima. Foi caminhando como podia, rente às paredes, portas, vitrines, tentando escapar das poças maiores que cresciam exponencialmente minuto a minuto. Precisava ser rápida para conseguir chegar à estação antes que o entorno alagasse. Faltava pouco.
Relâmpagos acendiam o céu turvo. Os estrondos soavam dentro dos humanos que ousavam tentar ir para casa. Faltava pouco.
Atravessou a Rio Branco com passo firme.
Próximo à entrada para a estação, uma mãe e seu bebê ensopados atravessaram seu caminho. Tentou desviar. Escorregou caindo direto numa poça em torno de um poste metálico. Tombou após um ligeiro tremor provocado por um choque elétrico potente. A cara enfiada na água.
Alguns raros transeuntes pararam perto. Sem ousar pisar na poça. Sem ousar tocá-la. Um homem gritou pedindo ajuda enquanto mais um trovão ensurdecia a cidade.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Amélia


Um som grave vinha da entrada da baía. Amélia não sabia se o navio entrava ou saía. O ar noturno se deslocava suave. Vinha úmido, fresco, perfumado de mar. Na casa, todos permaneciam acordados. Cada qual no seu canto. Alertas. Aceitar o sono era difícil. Não que os dias fossem mais fáceis. Amélia frequentemente desejava que as noites fossem mais longas. Gostava do apito profundo, da brisa fria, do silêncio e da escuridão. Preferia que os outros dormissem e que apenas ela vagasse flutuando em vapores etílicos. Às vezes, era como se o silêncio e a escuridão varressem dela vergonha, culpa, inibição. Veloz. Pulsava poeta noturna. Queria noites mais longas. 

As aranhas vinham pelos reflexos dourados que a mínima luz da vela acesa no canto mais negro da varanda tecia pelas paredes de pastilhas de vidro entremeadas de líquen e musgo. Às vezes, elas eram maiores que um esquilo. As lagartixas se fartavam quando isso acontecia. 

Amélia vestia um velho robe de seda verde com estampas de folhas pretas que pertencera à sua avó. Estava guardado em um armário - intacto. Deixava os longos cabelos castanhos cairem pelas costas. Vez por outra, uma lagartixa parava sobre a mesa, ao lado do copo de Porto, encarando-a. Imaginava o dia em que seria surpreendida por uma pergunta. Frequentemente, ficava tentada a coçar a cabeça de uma ou outra mais delicada. Mas, desde a cena de destroçamento de uma grande aranha peluda por duas pequenas osgas  filhotes, tem afastado esse impulso com determinação.

Quando sua avó era jovem, esses animais não existiam. Apenas passarinhos, abelhas e pequenas lagartixas de pele macia ousavam invadir a varanda onde a velha Amélia gostava de tomar o café da manhã. Também não havia o emaranhado de trepadeiras de flores azul néon praticamente encobrindo toda a vista. Na verdade, uma proteção. As trepadeiras tomaram vorazes o velho condomínio de mais de vinte andares. São como um escudo.

Nas últimas décadas a variedade vegetal e animal tornou-se extremamente opulenta. Radiação? Vazamentos tóxicos? O mundo mudou muito rapidamente. Cheio de novidades.

Amélia é nome antigo. Nome de sua avó - mãe de seu pai - e da avó de sua avó. A família cultiva nomes antigos. 

A semelhança física entre a atual Amélia e sua avó é notável. Faz algum tempo que só se encontram virtualmente. E os encontros têm que ser rápidos. Para não serem detectados. Isso se repete há cerca de três anos. Amélia voltou para a cidade incógnita. Não foi difícil se alojar no apartamento. Poucos vizinhos. Raríssimos os de outra época. Dois apenas. Um morreu subitamente dias após sua chegada.  Uma velhinha chorou ao vê-la, achando que a outra Amélia tinha retornado do futuro. Há boatos de que isso agora é possível. Ninguém levou a velhinha a sério. Ninguém a escutava. E ela acostumou-se a não insistir.

Amélia preferiu não desfazer o mal entendido. Não deveria fazê-lo.

Como ela, seus companheiros de jornada eram discretos, quase imperceptíveis em seus movimentos e conversas. Evitavam os corredores e escadas, escalando a vigorosa trepadeira no meio da madrugada. Silenciosos.

Ninguém imaginava que o futuro de tantos era traçado naquele estranho canto do mundo.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Elvira


Elvira estava no banheiro fazendo arquitetura imaginária. Cada azulejo das paredes era a fachada de um cômodo de apartamento no condomínio com enorme pátio interno cujo chão era o piso preto do toalete.  Antes, ela leu um pouco a enciclopédia do corpo humano e deliciou-se com uma página tripla mostrando um abdome grávido. Nunca tentaram lhe enganar com a cegonha. Ela se orgulhava disso como mérito próprio. 

Acabou de tomar seu potinho de Yakult. Achava muito doce, mas apreciava o azedinho que acordava a língua. 

Depois de muito obrar num estilo japa cyber punk avant la lettre, checou se o aquecedor estava aceso e encheu a banheira amarela. No corredor, sua mãe indagou se estava tudo bem. Elvira respondeu que tomaria seu banho. Já quase transbordando, desligou a torneira e o aquecedor. Do outro lado da porta, sua mãe imaginou a banheira cheia de grude de talco, perfume e creme rinse. Partiu sem reclamar antecipadamente. Afinal, era sábado. 

Elvira mergulhou e encontrou Jacques Cousteau em meio a corais, peixes palhaços e um tubarão martelo ancião. Entre agudos impossíveis, cantou numa língua inexistente, entremeada por palavras em inglês, a música do rato amigo do Michael Jackson e mergulhou Topo Gigio ao encontro de Costeau.

Alguém bateu energicamente na porta.

Seu pai chegara do consultório com visitas. Trouxe risoles de camarão. Muitos. Elvira não gostava de risoles nem de camarão, mas adorava o risoles que o pai trazia aos sábados. Já era hora do almoço e as visitas comiam e bebiam muito.  Vinho e cerveja foram derramados na toalha de mesa branca. Sua mãe fez a cara entre amarga e azeda.

Elvira riu pra dentro enquanto olhava diretamente nos olhos da mãe. Afinal, não foi ela quem sujou a toalha. Imaginou um futuro próximo onde a mãe reclamaria das visitas, da bebedeira, da falta de educação e do trabalho de clarear as toalhas de mesa que teimavam em permanecer manchadas. Alguém perguntou pela vizinha perdida do 301. A avó de Elvira fez uma cara amuada. Elvira já vira essa cara noutras perdidas escutadas pela velha. Um amigo do pai comentou a burrice do general presidente. Alguém imitava a já meio esquecida Rita Pavone na TV ligada na sala de estar.

Quase cinquenta anos depois, Elvira estava lendo o jornal no aplicativo do tablet no banheiro de seu quarto. Sua filha batia à porta vigorosamente reclamando que alguém ocupara o outro e ela precisava assistir a aula que começaria em menos de cinco minutos. Precisava usar a privada e lavar a cara com água fria. Com a pandemia, o banheiro de serviço virara área de quarenta de compras. Elvira interrompeu a leitura, fez sua higiene íntima e saiu com presteza. Sua filha entrou veloz. Súbito, gritou horrorizada diante do tablet encontrado sobre a caixa do vaso sanitário. Tinha nojinho de que a mãe levasse o aparelho para o recinto. Ninguém na casa sabia o quanto a reclamona apreciava copular a tergo usando todos os orifícios possíveis. 

Elvira chegou na cozinha e viu a mesa repleta de migalhas de pão. Berrou contra os retardados que faziam isso e não limpavam a própria sujeira. Em geral, era o marido ou o filho. Ou ambos. Às vezes, os ameaçava com histórias envolvendo formigas.

O filho aproveitou para lhe lembrar que não deveria usar a palavra retardado publicamente. Ela retrucou que não estavam em público. Ele citou o volume da voz dela como algo que tornava duvidosa a privacidade da conversa. Ela se fez de surda.

O café perfumado estava enchendo a cafeteira e o leite já tinha sido aquecido. Elvira passou a escovinha mágica sobre a superfície da mesa. Gritou que o café estava pronto. Lembrou que era muito cedo para gritar. A filha gritou que alguém lhe levasse a bebida. Gritando, lembrou-lhe que era muito cedo para gritar. Sem saber o motivo, Elvira pensou no encabulado Topo Gigio, num livro de Umberto Eco cujo protagonista era um bibliófilo e em Feltrinelli. Num instante, as Brigadas Vermelhas, o IRA, o ETA e o Baden-Meinhoff passaram explodindo em noticiários remotos. Os homens sentaram sorridentes e sonados. Elvira mandou alguém levar café para a menina que já estava assistindo sua aula online. O pai voltou dizendo que o professor não parecia acordado e que esse negócio de aulas online era muito louco. Elvira contou sobre os números da pandemia. O celular tocou. A irmã de Elvira fora hospitalizada com a peste. Só restava aguardar, disse o interlocutor. Smartphone desligado, Elvira imediatamente fechou sua boca com café quente. Tornou a encher a caneca. A música do rato amigo do Michael Jackson tocou na cabeça dela derramando um murmúrio estranho por sua boca cheia de café. Uma súbita vontade de comer risoles de camarão lhe perturbou o desjejum. E nem era sábado.