Elvira estava no banheiro fazendo arquitetura imaginária. Cada azulejo das paredes era a fachada de um cômodo de apartamento no condomínio com enorme pátio interno cujo chão era o piso preto do toalete. Antes, ela leu um pouco a enciclopédia do corpo humano e deliciou-se com uma página tripla mostrando um abdome grávido. Nunca tentaram lhe enganar com a cegonha. Ela se orgulhava disso como mérito próprio.
Acabou de tomar seu potinho de Yakult. Achava muito doce, mas apreciava o azedinho que acordava a língua.
Depois de muito obrar num estilo japa cyber punk avant la lettre, checou se o aquecedor estava aceso e encheu a banheira amarela. No corredor, sua mãe indagou se estava tudo bem. Elvira respondeu que tomaria seu banho. Já quase transbordando, desligou a torneira e o aquecedor. Do outro lado da porta, sua mãe imaginou a banheira cheia de grude de talco, perfume e creme rinse. Partiu sem reclamar antecipadamente. Afinal, era sábado.
Elvira mergulhou e encontrou Jacques Cousteau em meio a corais, peixes palhaços e um tubarão martelo ancião. Entre agudos impossíveis, cantou numa língua inexistente, entremeada por palavras em inglês, a música do rato amigo do Michael Jackson e mergulhou Topo Gigio ao encontro de Costeau.
Alguém bateu energicamente na porta.
Seu pai chegara do consultório com visitas. Trouxe risoles de camarão. Muitos. Elvira não gostava de risoles nem de camarão, mas adorava o risoles que o pai trazia aos sábados. Já era hora do almoço e as visitas comiam e bebiam muito. Vinho e cerveja foram derramados na toalha de mesa branca. Sua mãe fez a cara entre amarga e azeda.
Elvira riu pra dentro enquanto olhava diretamente nos olhos da mãe. Afinal, não foi ela quem sujou a toalha. Imaginou um futuro próximo onde a mãe reclamaria das visitas, da bebedeira, da falta de educação e do trabalho de clarear as toalhas de mesa que teimavam em permanecer manchadas. Alguém perguntou pela vizinha perdida do 301. A avó de Elvira fez uma cara amuada. Elvira já vira essa cara noutras perdidas escutadas pela velha. Um amigo do pai comentou a burrice do general presidente. Alguém imitava a já meio esquecida Rita Pavone na TV ligada na sala de estar.
Quase cinquenta anos depois, Elvira estava lendo o jornal no aplicativo do tablet no banheiro de seu quarto. Sua filha batia à porta vigorosamente reclamando que alguém ocupara o outro e ela precisava assistir a aula que começaria em menos de cinco minutos. Precisava usar a privada e lavar a cara com água fria. Com a pandemia, o banheiro de serviço virara área de quarenta de compras. Elvira interrompeu a leitura, fez sua higiene íntima e saiu com presteza. Sua filha entrou veloz. Súbito, gritou horrorizada diante do tablet encontrado sobre a caixa do vaso sanitário. Tinha nojinho de que a mãe levasse o aparelho para o recinto. Ninguém na casa sabia o quanto a reclamona apreciava copular a tergo usando todos os orifícios possíveis.
Elvira chegou na cozinha e viu a mesa repleta de migalhas de pão. Berrou contra os retardados que faziam isso e não limpavam a própria sujeira. Em geral, era o marido ou o filho. Ou ambos. Às vezes, os ameaçava com histórias envolvendo formigas.
O filho aproveitou para lhe lembrar que não deveria usar a palavra retardado publicamente. Ela retrucou que não estavam em público. Ele citou o volume da voz dela como algo que tornava duvidosa a privacidade da conversa. Ela se fez de surda.
O café perfumado estava enchendo a cafeteira e o leite já tinha sido aquecido. Elvira passou a escovinha mágica sobre a superfície da mesa. Gritou que o café estava pronto. Lembrou que era muito cedo para gritar. A filha gritou que alguém lhe levasse a bebida. Gritando, lembrou-lhe que era muito cedo para gritar. Sem saber o motivo, Elvira pensou no encabulado Topo Gigio, num livro de Umberto Eco cujo protagonista era um bibliófilo e em Feltrinelli. Num instante, as Brigadas Vermelhas, o IRA, o ETA e o Baden-Meinhoff passaram explodindo em noticiários remotos. Os homens sentaram sorridentes e sonados. Elvira mandou alguém levar café para a menina que já estava assistindo sua aula online. O pai voltou dizendo que o professor não parecia acordado e que esse negócio de aulas online era muito louco. Elvira contou sobre os números da pandemia. O celular tocou. A irmã de Elvira fora hospitalizada com a peste. Só restava aguardar, disse o interlocutor. Smartphone desligado, Elvira imediatamente fechou sua boca com café quente. Tornou a encher a caneca. A música do rato amigo do Michael Jackson tocou na cabeça dela derramando um murmúrio estranho por sua boca cheia de café. Uma súbita vontade de comer risoles de camarão lhe perturbou o desjejum. E nem era sábado.
