Em uma tarde recente – acho que era quase noite – lia Manoel de Barros. Encantada! Naquele dia dormi cedo. Acordei no meio da madrugada pensando no oposto da poesia. Acho que foi por causa de um lugar onde tenho ido com alguma frequência. Lá, as pessoas falam quase estritamente através de fórmulas. Às vezes, ouço pessoas diferentes recitando as mesmas frases inteirinhas. É esquisito! Às vezes, vão além, como se lessem um script. As variações são mínimas.Entendo o valor das fórmulas. Valor social. Fórmulas têm seu lado bom, garantidor de alguma civilidade, de um pouquinho de polidez. Algumas pessoas e grupos necessitam muito de fórmulas para lograrem conviver socialmente com um mínimo de “paz”. As fórmulas são o “único” ou quase único recurso de alguma civilidade para muita gente.
Certos ambientes – onde existem muita diversidade e disparidades – são propícios ao predomínio das fórmulas.
Mas continuo estranhando ambientes onde uma classe média abastada e com muitos anos de escolaridade se “comunica” quase exclusivamente utilizando frases feitas e coisas do gênero.
Fiquei pensando em dois dos poemas do Manoel de Barros que li e reli muitas vezes naquele dia. E, na mesma madrugada, batuquei uns nacos de pensamento no teclado do computador:
"Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores."
*
"Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos
ouvem de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando 3
fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?)"
Manoel de Barros (O Livro das Ignorãças)
A ler Manoel de Barros, pelo excesso de poesia (mais acertado dizer “pela intensidade poética”?), vislumbro com clareza o oposto (da poesia) na sociedade. Não se engane! Não é a utilidade, a descrição ou a ciência. Na sociedade, nos homens: o apego às fórmulas - este é o oposto da poesia. E isto não é julgamento. Isto sim é descrição. Uma das forças em nós nos inclina à repetição. Há muita repetição – muitas repetições.
Repetição pode ser funcional – o é muitas vezes. Talvez, na maior parte. Assim como ruptura e deslize podem ser funcionais. As linguagens dependem de diferença... e repetição. Repetir padrões faz parte do processo evolutivo. Mas não precisamos ou devemos repetir todo e qualquer padrão... só porque um dia aquilo deu certo...
Repetir faz parte da vida!
Repetimos. Rezamos. Rezamos nossas fórmulas compulsivamente, à força de acreditarmos e de nos fazermos acreditar. Rezamos compulsivamente. Nossos rituais de exorcismo visam afastar o que em nós reside. Repetem fórmulas, sintagmas congelados em profusão. Exorcismo desesperado. Justo porque – percebemos – as palavras derivam. A cada passo engravidam. E os demônios em nós espreitam os deslizes. Se insinuam discretos, ávidos por exibirem-se em toda sua exuberância.
Fórmulas acalmam porque repetição – já experimentadas, conhecidas, familiarizadas, aplainadas, pasteurizadas, sossegadas. Nossa mente se fixa no mesmo percurso reto, certo. A repetição acalma, ilude o medo, disfarça o perigo que não queremos ver. Somos capazes de suportar a visão do perigo que nos assedia?
Pessoas repetem. Rezamos. Palavras esvaziadas – pela força da repetição –, desengravidam de mundos, de surpresas, de perigos. Desengravidam o medo, medo de nós mesmos, de contermos (ou de transbordarmos) o perigo. Perigo gestado, contido, incontido, transbordado de nós.
Tudo periga virar fórmula, repetição, reza. Porque o medo espreita. Porque os fantasmas pululam em nós. Porque nossos monstros nos chacoalham. De dentro para fora. As pessoas... NÓS! Nós não queremos ver os monstros. Porque, tal qual crianças, acreditamos na mágica dos olhos – na mágica da cegueira:
“o que não vejo não existe”.
Ou ainda:
“o que não vejo não me vê”.
O que seus olhos são capazes de suportar?